A VIZINHA SURFISTA
Eu morava numa
casa de esquina, de uma arquitetura um tanto quanto estranha, cujo charme era o
andar de cima, um amplo espaço onde coloquei minha oficina, o cavalete de
pintura, e minha escrivaninha.
O lugar era quase bom....
Quase, porque, no
outro lado da rua, um vizinho imbecil, mantinha
doze cachorros num corredor de uns vinte metros quadrados, que latiam
freneticamente, principalmente durante as noites. Fato que tornou minha vida um
inferno, porque o sujeito começou achar ruim das minhas reclamações. Acabei
processando o cara, porque ainda por cima ele me xingou de tudo quanto foi
nome, numa das vezes que reclamei. Mas como a justiça anda muito devagar, mudei
de lá antes do juiz mandar o cidadão me indenizar e se livrar dos cachorros.
Mas, o lugar era
bem gostoso... quando os cachorros não latiam.
Eu passava praticamente todo tempo no agradabilíssimo terraço que
cercava parte desse andar superior, preparando as aulas para os cursos que estava
dando, lendo, pintando, ou simplesmente contemplando a maravilhosa Serra do Mar
com sua fabulosa mata atlântica, uma paisagem realmente linda. Quando a zoeira
canina apaziguava, o ruido do mar aumentava o meu deslumbramento.
A casa ficava na
esquina de uma rua larga dividida por um canteiro central, com outra que levava
até a praia, a um quarteirão de distância. E era justamente nessa esquina, onde
raramente passava algum carro, que alguns garotos da vizinhança vinham
brincar... tentavam empinar pipa, jogar bola... eram alguns meninos e menidas
de cinco a uns doze anos de idade. No jardimzinho da frente havia dois
coqueiros, sempre com frutos maduros, e às vezes eu levava algum para a
garotada. Bem... e no meio da história apareciam as mães, e tinha uma mãezinha
que era demais.
Era a Renata... A RENATA... !!!!
Ela era uma moça
de uns trinta anos linda linda linda. Esse tipo mestiço mistura de tudo, branco
negro índio... muito comum no nosso
litoral, olhos amendoados, boca carnuda, um corpo esguio e esse jeito muio
sensual das mulheres do pedaço.
Renata era
surfista, e sempre que ia à praia passava por lá. Quando a via, eu dava um
jeito de falar alguma coisinha, sei lá, do filho, do tempo, do mar, e às vezes
tentava contar alguma história interessante.
Infelizmente, além da grande barreira etária e cultural, a deslumbrante Renata
tinha um namorado. Um cara meio feio, baixinho, atarracado, branquelo e com
cara de mal humorado. Um disparate, eu pensava, como é possível uma mulher
linda como essa ficar com um ser tão sem graça. E tinha também duas irmãs, meio
feias de cara, mas uma delas era gostosíssima, sempre com umas roupas um tanto
quanto mínimas, e um arzinho meio oferecido. Às vezes até achava que a Zuleica
poderia estar interessada em mim, ou talvez apenas me achava um velho
engraçadinho... muito provavelmente.
Um dia, uma tampa
de ferro da galeria de esgotos, bem no meio da esquina, começou a expelir uma
água fétida. Eu liguei reclamando, e quando o caminhão de serviço apareceu, os
funcionários contaram que a rede de esgoto do bairro não estava ligada a lugar
nenhum, e devido às ligações clandestinas, os canos ficavam tão cheios que a
coisa extravasava. Pouco tempo depois, caiu a maior chuvarada e a água escura voltou
a fluir pelos buracos daquela tampa, mas os meninos foram lá empinar suas pipas, como se nada houvesse. Fui lá conversar com eles
disse para eles não deixarem a linha cair naquelas poças... Foi uma pena. Por
causa disso a garotada parou quase completamente de frequentar minha esquina,
que perdeu sua graça. Fiquei morando lá pouco tempo, e acabei vendendo a casa
por que as noites caninas eram um tormento.
Voltei morar na casinha
esquisitinha e feia, lá no fim da cidade, ao lado de uma reserva cheia de
passarinhos. Um lugar também gostoso, mas era reduto de receptadores de
bicicletas roubadas, pequenos traficantes, putas de várias modalidades e outras
figuras com as quais as tentativas de socialização eram um tanto quanto
dificultosas.
Mas minha vidinha
tranquila começou a se complicar devido a uma irritante hérnia, cada vez mais
insuportável. Consultei o único cirurgião gástrico da cidadezinha, que recomentou
uma cirurgia. E ele mesmo sugeriu que seria bom operar em São Paulo, já que eu tinha um bom seguro, além de existir a possibilidade de eu ficar na casa de minha ex-esposa.
Quase deu certo.
Combinei tudo,
arranjei um cirurgião bam bam bam e lá fui me instalar na casa de minha ex
mulher e de nossos filhos.
Infelizmente o
seguro começou a criar dificuldades, o médico de Sampa era um sujeito
arrogante, metido e desagradavelmente desatencioso. Então a perspectiva de
passar quase um mês perturbando a existência de minha convictamente ex, com
certeza iria atrapalhar a relação amistosa que conseguimos manter e que eu
prezo bastante.
O fato é que
renunciei ao maior cirurgião do mundo (na modestíssima opinião dele) e à
segurança e conforto de um grande hospital coberto pelo seguro, e resignei-me a
ser atendido na prosaica Santa Casa que tem uma ala para conveniados.
Escalei um dos
meus queridos filhos que se dispôs a vir para a nada agradável tarefa de ver
seu pai balbuciando palavras desconexas ao voltar do efeito dos medicamentos
que acompanham a tal raquidiana.
Lembro vagamente
que a anestesia e seus complementos me deixaram num estado semi-onírico, onde eu
entrava e saia num estranho ambiente sonoro nada hospitalar, com pessoas
fazendo fofoca, dando risada, ao som da única rádio comercial da cidade, que
tem a preocupação de selecionar tudo o que existe de ruim.
Finalmente me vi no
apartamento de hospital, simples, mas razoavelmente equipado, acompanhado de
meu filho, com uma cara pouco feliz... talvez ele preferisse estar nos braços
de sua namorada.
Acontece que devido
ao soro, que enche a bexiga, a vontade de urinar era fortíssima, tão forte que
levantei bem devagar, e fui empurrando tropegamente a árvore de metal com sua
coleção de garrafinhas até o banheiro.
E nada... Quase... ai agora vai... quase... Nada.
Apareceu uma
enfermeira... me deu uma bronca dizendo que eu não podia levantar e me trouxe um papagaio.
Ótimo. Deitado na
cama com uma certa dificuldade pra ficar de lado, me concentrei e... bom, agora
é só relaxar. Mas nada. A pressão, os efeitos residuais da anestesia, ficava
sempre no quase. Ai, agora vai... Quase.
A situação ficou
tão desagradável que chamei novamente a enfermeira e pedi uma sonda.
Pouco depois entraram
duas moças e uma delas, que parecia ser bem bonita, pegou, com sua delicada
mãozinha, meu heróico porém assustado pintinho, e foi atenciosamente enfiando um caninho de plástico. Olhei para a linda moça, e percebi um rosto conhecido sob o disfarce de
enfermeira.
- Puxa, você não é a Renata?! Lá da rua...
- Puxa, você não é a Renata?! Lá da rua...
- É, sou sim...
- Desculpe não ter
te reconhecido.
- É eu sei. O
senhor está meio dormente, é assim mesmo.
E a Renata, tão
linda e atenciosa, ia manipulando delicadamente o meu nobre...
- Essa não!!! - pensei...
quase falei...
- Olha, Renata... Não era bem assim que eu queria ver você mexendo
no meu brinquedinho!!!
- só pensei...
- só pensei...
Quase falei...