terça-feira, 24 de dezembro de 2013

HISTÓRIAS DO QUASE (mais uma)

                                          A VIZINHA SURFISTA


         Eu morava numa casa de esquina, de uma arquitetura um tanto quanto estranha, cujo charme era o andar de cima, um amplo espaço onde coloquei minha oficina, o cavalete de pintura, e minha escrivaninha.
          O lugar era quase bom....
         Quase, porque, no outro lado da rua, um  vizinho imbecil, mantinha doze cachorros num corredor de uns vinte metros quadrados, que latiam freneticamente, principalmente durante as noites. Fato que tornou minha vida um inferno, porque o sujeito começou achar ruim das minhas reclamações. Acabei processando o cara, porque ainda por cima ele me xingou de tudo quanto foi nome, numa das vezes que reclamei. Mas como a justiça anda muito devagar, mudei de lá antes do juiz mandar o cidadão me indenizar e se livrar dos cachorros.
         Mas, o lugar era bem gostoso... quando os cachorros não latiam.  Eu passava praticamente todo tempo no agradabilíssimo terraço que cercava parte desse andar superior, preparando as aulas para os cursos que estava dando, lendo, pintando, ou simplesmente contemplando a maravilhosa Serra do Mar com sua fabulosa mata atlântica, uma paisagem realmente linda. Quando a zoeira canina apaziguava, o ruido do mar aumentava o meu deslumbramento.
         A casa ficava na esquina de uma rua larga dividida por um canteiro central, com outra que levava até a praia, a um quarteirão de distância. E era justamente nessa esquina, onde raramente passava algum carro, que alguns garotos da vizinhança vinham brincar... tentavam empinar pipa, jogar bola... eram alguns meninos e menidas de cinco a uns doze anos de idade. No jardimzinho da frente havia dois coqueiros, sempre com frutos maduros, e às vezes eu levava algum para a garotada. Bem... e no meio da história apareciam as mães, e tinha uma mãezinha que era demais.
         Era a Renata...     A RENATA... !!!!
         Ela era uma moça de uns trinta anos linda linda linda. Esse tipo mestiço mistura de tudo, branco negro índio...  muito comum no nosso litoral, olhos amendoados, boca carnuda, um corpo esguio e esse jeito muio sensual das mulheres do pedaço.
         Renata era surfista, e sempre que ia à praia passava por lá. Quando a via, eu dava um jeito de falar alguma coisinha, sei lá, do filho, do tempo, do mar, e às vezes tentava contar alguma história interessante. 
Infelizmente, além da grande barreira etária e cultural, a deslumbrante Renata tinha um namorado. Um cara meio feio, baixinho, atarracado, branquelo e com cara de mal humorado. Um disparate, eu pensava, como é possível uma mulher linda como essa ficar com um ser tão sem graça. E tinha também duas irmãs, meio feias de cara, mas uma delas era gostosíssima, sempre com umas roupas um tanto quanto mínimas, e um arzinho meio oferecido. Às vezes até achava que a Zuleica poderia estar interessada em mim, ou talvez apenas me achava um velho engraçadinho... muito provavelmente.

         Um dia, uma tampa de ferro da galeria de esgotos, bem no meio da esquina, começou a expelir uma água fétida. Eu liguei reclamando, e quando o caminhão de serviço apareceu, os funcionários contaram que a rede de esgoto do bairro não estava ligada a lugar nenhum, e devido às ligações clandestinas, os canos ficavam tão cheios que a coisa extravasava. Pouco tempo depois, caiu a maior chuvarada e a água escura voltou a fluir pelos buracos daquela tampa, mas os meninos foram lá  empinar suas pipas, como se nada houvesse. Fui lá conversar com eles disse para eles não deixarem a linha cair naquelas poças... Foi uma pena. Por causa disso a garotada parou quase completamente de frequentar minha esquina, que perdeu sua graça. Fiquei morando lá pouco tempo, e acabei vendendo a casa por que as noites caninas eram um tormento.
         Voltei morar na casinha esquisitinha e feia, lá no fim da cidade, ao lado de uma reserva cheia de passarinhos. Um lugar também gostoso, mas era reduto de receptadores de bicicletas roubadas, pequenos traficantes, putas de várias modalidades e outras figuras com as quais as tentativas de socialização eram um tanto quanto dificultosas.
         Mas minha vidinha tranquila começou a se complicar devido a uma irritante hérnia, cada vez mais insuportável. Consultei o único cirurgião gástrico da cidadezinha, que recomentou uma cirurgia. E ele mesmo sugeriu que seria bom operar em São Paulo, já que eu tinha um bom seguro, além de existir a possibilidade de eu ficar na casa de minha ex-esposa.
         Quase deu certo.
         Combinei tudo, arranjei um cirurgião bam bam bam e lá fui me instalar na casa de minha ex mulher e de nossos filhos.
         Infelizmente o seguro começou a criar dificuldades, o médico de Sampa era um sujeito arrogante, metido e desagradavelmente desatencioso. Então a perspectiva de passar quase um mês perturbando a existência de minha convictamente ex, com certeza iria atrapalhar a relação amistosa que conseguimos manter e que eu prezo bastante.
         O fato é que renunciei ao maior cirurgião do mundo (na modestíssima opinião dele) e à segurança e conforto de um grande hospital coberto pelo seguro, e resignei-me a ser atendido na prosaica Santa Casa que tem uma ala para conveniados.
         Escalei um dos meus queridos filhos que se dispôs a vir para a nada agradável tarefa de ver seu pai balbuciando palavras desconexas ao voltar do efeito dos medicamentos que acompanham a tal raquidiana.
         Lembro vagamente que a anestesia e seus complementos me deixaram num estado semi-onírico, onde eu entrava e saia num estranho ambiente sonoro nada hospitalar, com pessoas fazendo fofoca, dando risada, ao som da única rádio comercial da cidade, que tem a preocupação de selecionar tudo o que existe de ruim.
         Finalmente me vi no apartamento de hospital, simples, mas razoavelmente equipado, acompanhado de meu filho, com uma cara pouco feliz... talvez ele preferisse estar nos braços de sua namorada.
         Acontece que devido ao soro, que enche a bexiga, a vontade de urinar era fortíssima, tão forte que levantei bem devagar, e fui empurrando tropegamente a árvore de metal com sua coleção de garrafinhas até o banheiro.
         E nada...  Quase... ai agora vai... quase... Nada.
         Apareceu uma enfermeira... me deu uma bronca dizendo que eu não podia levantar e me  trouxe um papagaio.
         Ótimo. Deitado na cama com uma certa dificuldade pra ficar de lado, me concentrei e... bom, agora é só relaxar. Mas nada. A pressão, os efeitos residuais da anestesia, ficava sempre no quase. Ai, agora vai... Quase.
         A situação ficou tão desagradável que chamei novamente a enfermeira e pedi uma sonda.
         Pouco depois entraram duas moças e uma delas, que parecia ser bem bonita, pegou, com sua delicada mãozinha, meu heróico porém assustado pintinho, e foi atenciosamente enfiando um caninho de plástico. Olhei para a linda moça, e percebi um rosto conhecido sob o disfarce de enfermeira.
           - Puxa, você não é a Renata?! Lá da rua...
         - É, sou sim...
         - Desculpe não ter te reconhecido.
         - É eu sei. O senhor está meio dormente, é assim mesmo.
         E a Renata, tão linda e atenciosa, ia manipulando delicadamente o meu nobre...
         - Essa não!!! - pensei... quase falei...
         - Olha, Renata...  Não era bem assim que eu queria ver você mexendo no meu brinquedinho!!!
         - só pensei...
         Quase falei...    


terça-feira, 17 de dezembro de 2013

quase erótica...

                                      QUASE NAMOREI A ANGÉLICA

Mais uma adaptação das aventuras eróticas do Duda, devidamente depurada dos detalhes obscenos...

         Conheci a Angélica faz um bom tempo, num restaurante relativamente bom, onde se reuniam alguns poucos boêmios. Passei por lá numa noite em que havia uma comemoração com muita gente aproveitando os drinques vagabundos de graça, aquela algazarra toda. Lá estavam alguns conhecidos com os quais tentei conversar, mas a gritaria tornava qualquer diálogo uma tarefa mais ou menos impossível. Peguei uma bebida meio adocicada bem forte, que me deixou meio atordoado, e fiquei zanzando de um lado para o outro.
         De repente, percebi uma moça razoavelmente interessante olhando insistentemente na minha direção. Fiquei meio sem saber o que fazer por que ela me era completamente desconhecida, até olhei pra trás pra ver se era comigo ou não. Todos falavam muito alto dando risada, fazendo piadas sobre tudo e toda hora os olhos da moça pareciam estar grudados em mim. Olhos grandes, cabelos muito negros, um rosto bonito, mas havia alguma coisa meio fora de lugar, as distâncias, as proporções, atacavam a beleza produzindo um ar às vezes misterioso, às vezes mau. Falava e ria bastante, comentando sua paixão pelo Palmeiras e pela beleza de um jogador cujo nome não lembro mais. Pelo comportamento, não era do tipo de mulher que me atrai, mas ela olhava tanto que me aproximei desse grupo, onde alguém me perguntou, Você que também é palmeirense acha esse cara assim tão bonito? Brinquei fazendo alguma piadinha sobre não ser muito especialista em beleza masculina, e qualquer coisa sobre a beleza feminina, o já levou a moça achar que era com ela. Chegou ao meu lado, jogou olhares sedutores, afastou seus longos cabelos repartidos assimetricamente, em movimentos suaves, e disparou um monte de perguntas, sempre repetindo esses movimentos, assim, digamos insinuantes... Como você se chama, onde mora, vem sempre aqui, já tinha te visto... Mas alguém me puxou para um outro grupo que falava sobre degustação de vinho, e lá veio mais um monte de disparates. Eu mais ou menos atordoado... de repente a Angélica, passou perto de mim, me afastou dos outros e me disse, Olha achei você um cara interessante, mas aqui não dá pra conversar, vou até o restaurante ao lado e te espero, passa lá daqui uma hora, Bem eu posso sair agora, Não, não quero que vejam a gente sair junto. Sabe como é... Está bem, onze e meia mais ou menos, Isso.    
         E lá eu fiquei andando de um lado para o outro, mais perdido ainda, até que fui abordado por um sujeito metido a folclorista, mas muito chato, daqueles que gosta de fazer perguntas e quando você cai na dele e responde, passa a demonstrar que sabe muito mais do que você, e despeja um monte de baboseiras. Lá pelas tantas o cara me falou que ele tinha a solução para o lixo... Sabe qual é? E insistia, desafiando, e quando respondi que a coisa é complicada, sapecou, Complicado nada, é muito simples, basta pegar o lixo colocar nos aviões cargueiros e jogar nas florestas! Fiquei meio boquiaberto... até hoje não sei se o cara estava tirando uma da minha cara, concordei e pedi licença para pegar sei lá o que... e caí fora, atrás da perua.     
         -   Olá, pensei que tinha esquecido de mim – ela falou. 
         - Ora, o que é isso... é que lá ainda tinha um monte de gente. Você tem que sair logo, ou podemos tomar mais alguma coisinha, bater um papo?
         O local estava bem mais vazio, então escolhemos uma mesa mais discreta e lá ficamos desenrolando uma conversa tipo paquera inicial, onde tudo é agradável. Angélica bem oferecida, se esmerava nas poses olhares gestos pegadinhas na mão e outras artimanhas. É claro que eu estava gostando, mas ela tinha algo estranho, ao mesmo tempo que imaginava o que poderia rolar, havia um certo certo desconforto, talvez preconceito, ou medo de trepar com uma desconhecida. (Agora o que mais gosto de fazer é muita sacanagem logo no começo. Sabe o que é você pegar...) Bem... os delírios eróticos do Duda ficam entre parêntesis para despertar a imaginação dos meus leitores mais... malandrinhos. 
           Bom, quando saímos do bar, apesar de tudo, eu estava um tanto quanto excitado e evidentemente levei a moça para casa. Quando chegamos, ela pediu para parar um pouco adiante, para não ficar na frente do portão, e o que seria um beijinho de despedida, se transformou rapidamente num suceder de beijos e carinhos muito intensos.  E de repente, Angélica abre o zíper de minha calça e mergulha gulosamente até minha mais completa satisfação. (Bem, aí o Duda se divertiu contando tudo nos mais mínimos detalhes, mas em respeito à moral e bons costumes...)
         Quando consegui me  recuperar do espanto e prazer comecei rir, o que a deixou um pouco desconcertada. - Por que você está rindo, ela perguntou. - Ora, você me chupa desse jeito e queria que eu não ficasse feliz, acho que é alegria.  
         Mas não era alegria, era um misto de resto de prazer com um vazio e uma certa dose de repulsa, e como já era tarde eu realmente estava bem cansado. Ela se despediu desceu do carro lentamente e assim que entrou portão a dentro respirei aliviado  e fui embora.
         Foi assim que a Angélica entrou na minha vida, numa passagem bastante curta mas um tanto significativa.
         Mas apesar da Angélica ser uma mulher bem bonita tanto de cara como de corpo, não me sentia atraído. Sei lá, emanava algo que não me inspirava... acho que o ataque inicial me levou à logica conclusão que ela deveria ser bastante promíscua, afinal eu não era um homem assim tão irresistível. Eu realmente não me entusiasmava com a ideia de compartilhar minha possível namorada com uma boa parte da cidade. Não queria começar algo que com certeza não ia ser bem feito, e depois ter que ficar dando desculpas então sugeri que seria melhor tentarmos ficar amigos. Inventei uma estória qualquer sobre uma paixão secreta, ou qualquer coisa no gênero, que seria bom a gente se conhecer melhor antes de começar uma relação amorosa. E a reação dela foi um bem sarcástica dizendo que longe dela se envolver amorosamente com um cara assim como eu.
         Passamos a nos encontrar com bastante frequência. Mas Angélica era uma mulher bastante interesseira, e continuava me procurando, sempre pedindo algum favor, e com algum tipo de insinuação. Ao mesmo tempo me contou que gostava de  um fulano que segundo ela era muito bonito mas meio bandido, e que tentava ficar longe dele mas não conseguia.
         Um belo dia ao conferir minha conta bancária apareceu um estranho cheque que não me lembrava para quem tinha passado. Ao examinar o bloquinho dos cheques,  percebi que faltava o último canhoto do talão. Fui ao banco e lá me deram uma cópia de um cheque cuja assinatura não era a minha, e que por ser um valor relativamente baixo, não havia sido conferido. Ou seja, alguém roubara a última folha do meu talão, com o canhoto e tudo. E no verso do cheque estava um endereço, uma  rua Bahia. Então resolvi convidar Angélica para tomar umas cervejinhas, e quando estávamos conversando tirei um papel do bolso e disse que gostaria de viajar... - Anota aí pra mim os lugares! Eu anotar? É isso mesmo, esqueci os óculos.
         Pensei em lugares com as letras iniciais dos números do valor que estava na face do cheque e por fim falei Bahia. Conversamos mais um tempo, e quando cheguei em casa fui correndo comparar as letras e não havia dúvida que quem escreveu rua Bahia no cheque tinha sido ela. Isso me deixou bem aborrecido. Não sabia se deveria falar com ela ou não, levar o cheque enfiar em baixo do nariz dela ou não.
        
         Alguns dias depois ao passar no café que era frequentado por alguns conhecidos, um deles estava lá sentado lendo um jornal e me chamou.
         - Você soube que a Angélica morreu nessa madrugada?      
         - O que?! Morreu?!
         -É...cara...
         - Mas como? Onde? – eu fiquei realmente abismado... 
         - Levou um tiro... 
         - O que?!!! Um tiro!!! Que loucura... foi alguma briga?
         - Não foi briga... foi assassinada de madrugada, na frente da própria casa! Pela trajetória da bala, ela provavelmente estava ajoelhada, foi um tiro na nuca, de cima para baixo, a queima roupa!!
         Apesar de tudo, me vieram lágrimas nos olhos. Comentamos que ela andava com uns caras barra pesada. Ele achava que tinha sido o tal fulano com que ela saia de vez em quando. Parece que era bandido mesmo.
         - Caramba! Então escuta só o que vou contar... Tenho uma outra amiga que ajuda um jovem adolescente desvairadinho que morava num orfanato lá na região. E foi justamente nesse domingo, quando eu estava pensando em ligar para a Angélica, essa amiga ligou dizendo que ia passar em casa e me levar pra conhecer o orfanato. Como a visita demorou mais do que o previsto e acabei não marcando encontro com a Angélica.  Provavelmente iríamos estacionar nalgum boteco e eu a levaria para casa..                
         - Cara! Quase que você se mete na maior encrenca! Poderia até ser acusado!
             - Ou levado um tiro também!                                                                                        

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

as aulas de italiano

                              
         Era mais ou menos no começo do terceiro ano do ginásio, quando um belo dia, entrou na classe o Dr. Maniglia!, Supremo Diretor, acompanhado de uma jovem senhora com um certo ar sofredor. Dr. Maniglia! era, ou pelo menos se considerava, uma Autoridade Suprema, sua frase predileta era:
         - O Diretor! sempre tem razão, mesmo que esteja errado!!!!
         Nesse dia, nos informou que, num gesto Maravilhoso e Supremo, o Colégio iria oferecer um curso de italiano aos alunos que quisessem ter a dádiva suprema de ter aula com a Senhorita Anna Carvalho. Dr. Maniglia! enfatizou dizendo que as aulas eram opcionais, e os alunos que tirassem boas notas poderiam incluí-las no boletim. - Além disso, esse curso não vai ser cobrado de nossos alunos!!! -  Examinou um papelzinho e colocou na lousa o horário da aula. - Os senhores tem alguns dias para colocar seus nomes na lista que vai ficar ali!!!
         Rolou aquele zumzum na classe com uma boa parte já resmungando baixinho... porra, agora vai ter mais coisa ainda pra gente estudar... Quem vai, quem não vai... A turma que sentava nas carteiras da frente achando  uma maravilha. Mas o pessoal menos cedê-éfe, eu no meio, se entusiasmou. Achamos que ficaríamos no pátio em vez de assistir a tal aula, por que era justamente a primeira depois do recreio.
         Passado o prazo para completar a lista, a grande maioria da classe preferiu ficar zanzando no recreio, e só uns dez alunos se inscreveram.
         Finalmente Dr. Maniglia! anuncia que as aulas com a Senhorita Carvalho iriam começar na semana que vem, e recita as regras para os energúmenos que não quiseram aceitar esse fabuloso brinde.
         A presença na classe durante a aula era obrigatória para todos. Teríamos que ficar no fundo da classe no mais absoluto silêncio sem fazer nada! Era proibido ler. Era proibido fazer lição de casa. Era proibido estudar para prova. Ou seja. Dr. Maniglia! resolveu colocar a gente de castigo! Os castigos eram comuns... ficar sem fazer nada embaixo da escada, em pé. Ou então no canto da classe virado para a parede. Teríamos que ficar lá na classe sem fazer nada o tempo todo!!!
         A frustração e revolta dos maus elementos que não optaram pelo curso foi enorme, e ainda por cima éramos alvo de gozação dos meninos bonzinhos. Saco!!!       
         E a tal aula de italiano virou queda de braço entre o Supremo Dr. Maniglia! e os alunos. As aulas eram uma bagunça... a coitada da Senhorita Carvalho ficava desesperada, mas o Supremo sempre entrava intempestivamente na classe para flagar algum deslise de um dos malfeitores.
         Ao meu lado sentava um menino magro um tanto calado, da turma dos menores. Era o Ennio Syulas Fernandes. Esse menino, virou líder universitário, e depois “terrorista”. Sua foto apareceu nos cartazes “procura-se”, na época da ditadura, mas  conseguiu  fugir e escapar vivo. Com a anistia, voltou, se elegeu deputado, passou para o outro lado da política, foi ministro e senador... quem diria?! Tão magrinho, meio mirradinho.
          Um dia o Ennio me perguntou – Escuta aqui, teu pai é médico, arruma um remédio bem fedorento para a gente  espalhar  na classe!! Planejara tudo direitinho, com mais uma meia dúzia de garotos e todo dia vinha me pedir o tal remédio. O plano era ninguém dizer quem tinha sido o autor da proeza e então a classe ganharia uma suspensão coletiva e ficaríamos dois dias de folga.
         Acontece que minha mãe tomava um remédio para o fígado dotado de um cheiro absolutamente nauseabundo, que revoltava as vísceras dos pressentes toda vez que ela abria o vidro. Bem, depois de tanta pressão, eu surrupiei um vidro e levei para a escola...  Mas nunca imaginei o que iria se passar.
         A turma exultou, um deles agarrou o remédio, deu uma cheirada e ficou verde. - Nossa!!! É isso aí!!! - Assim que acabou a aula antes do recreio, liderados pelo magriço Ennio, demoramos para sair e esmagamos um monte de pílulas lá na frente, no estrado,  na mesa do professor, no apagador, no quadro negro... e saímos sorrateiramente.
         Eu nunca tinha imaginado que os carinhas iam realmente espalhar o remédio, e logo que chegamos ao recreio já comecei a ficar apavorado. Com certeza a culpa ia cair na minha cabeça, afinal eu levei a arma do crime...
         Para encurtar a estória, a Senhorita Carvalho chegou, abriu a porta, entrou... e parou estarrecida. O cheiro realmente havia contaminado a classe de uma forma infernal! A coitada, que já tinha um arzinho desamparado, desatou num choro compulsivo, quase entrando em choque.  E saiu acompanhada por dois ou três puxa-sacos, que foram com ela até a diretoria. Daí a pouco chega o Supremo! Dr. Maniglia!, furioso, acompanhado de um vigilante e nos obriga a entrar na classe que mais parecia uma tubulação de esgoto, ou um caminhão de lixo. Deixou a gente esperando naquela fedentina e saiu juntamente com a professorinha Senhorita Carvalho. Hoje eu me pergunto se eles não tinham alguma relação um pouco, digamos...  mais íntima. Abriram todas as janelas e o zum zum começou, com todo mundo olhando para mim, que a essas alturas estava querendo sumir, afundar dentro do chão. 
         Quando o Ennio me falou - Calma, calma! Ninguém vai te acusar de nada! – percebi que a culpa já estava definida. Eu era o causador da desgraça toda! Aí que me apavorei mesmo.
         Ficamos na classe, com um vigilante mal humorado na porta, nos olhando furiosamente. Aquele burburinho percorrendo a classe e eu...? Eu já  havia me transformado na personificação do mal.
         O Supremo Diretor voltou, abriu o diário da classe e começou a perguntar aluno por aluno – Fulano de Tal, foi o senhor? Um por um. Ele olhava nos olhos do garoto e fazia a pergunta. Todos que vieram antes de mim responderam rapidamente. Não senhor! Não fui eu! Não fui eu, nem sei quem foi! E eu, cada vez mais apavorado. Quando chegou a minha vez eu estava absolutamente paralisado!
         - Foi o senhor???!!!!
         Engoli em seco um monte de vezes, suava frio, tentei balbuciar a resposta, mas a voz não saia. Finalmente...
         - N..  n.. nã.. não... SSee... Não  sSe.. sSeee nhor... !
         - JÁ PARA A DIRETORIA!!!!!  
         Fui submetido a um interrogatório pelo Terrível e Avassalador Supremo! Dr. Maniglia!, juntamente com o Vice-Supremo, Dr. Mazzaneta. Acabei confessando que trouxera o remédio, mas resisti heroicamente e não falei o nome de nenhum dos outros facínoras.
         Chamaram meus pais para uma reunião e ao final desistiram de saber quem eram os outros, já que tinha aparecido o bode expiatório, o monstro delinquente que quase matou a coitada da Senhorita Carvalho!
         E foi assim que fui convidado a não me matricular no próximo ano letivo!!!