terça-feira, 26 de novembro de 2013

CARTA AO CLEMENS

                                                  

Caro Elmer C. Smaschgen
            Depois que decidi dar um tempo com minha atividade culinária, nesta encantadora e trepidante Ubatuba, resolvi elaborar este blog. Fiz uma lista dos textos que já escrevi durante minha fugaz existência, além disso estou a escrever coisas novas.
            Não lembro como, a gente se encontrou nesta fantástica net, mas foi um prazer trocar emails, com um dos mais interessantes ex colegas de faculdade. É mesmo... estou falando de você!!!
            No meio de nossas eletrizantes missivas, você disse não se lembrar de mim. Uma parte de seu passado sumiu de sua memória. Não sei em que raio de confusão e agremiação você se meteu, nos anos de chumbo, mas pelo menos está vivo e mais ou menos incólume. Mais ou menos, porque mesmo quem atuou na periferia dos movimentos universitários carrega marcas na alma até hoje.
            Não é facil a gente descobrir que antigos colegas, companheiros e até bons amigos foram trucidados, como a suave Lola, companheira do Arantes, que teve a cabeça esmagada lentamente, como conta o frei Beto no seu “Batismo de Sangue”. Usaram uma monstruosidade chamada de “Coroa de Cristo”, instrumento medieval de tortura. Trucidaram justamente alguns dos que vieram me chamar para a luta armada e de quem eu discordei, dizendo que era um completo disparate, e um veredadeiro suicídio.
            Mas quando entrei no puxadíssimo curso de Biologia na Famosíssima Faculdade de Filosofia da USP, na novíssima e belíssima cidade Universitária, com vários prédios do grandíssimo Arquiteto Artigas, era tudo um sonho superlativo.
            Um futuro maravilhoso nos esperava... era o começo de 1964.
        Talvez você lembre que fui teu calouro, na biologia. Eu era bicho... junto com Dan, Odair, Ana Clara, Eliana, Zé Maria (parece que morreu muito jovem)... a lindíssima Silvia, com quem quase casei. Ah, lembrei do japonês chamado Ideatu (se chamassem ele de Ideúta ele dava porrrada!!!!), que adorava cantar trechos de ópera, a plenos pulmões.
            No primeiro ou segundo dia de aulas, um aviso na entrada de um dos prédios, anunciava uma aula inaugural a ser proferida pelo famoso professor alemão Clemens Shrage.   
            No dia, hora, numa linda sala cheirando a tinta, que estava sendo usada pela primeira vez,  você apareceu com uma cara de cientista louco, loiro, de óculos, meio descabelado, com um forte sotaque alemão. Apesar de muito jovem, estava bravíssimo resmungando por ter que dar aula para gente que ainda não sabia nada, e que seria uma perda de tempo porque lá ninguém teria capacidade para entender o que ia explicar. E começou uma aula muito estranha...
            O prof. Clemens fez uma confusão danada com umas fórmulas de bioquímica misturadas com leis de gases. Era tudo muito sem sentido e eu que tinha estudado como um louco, achei o maior disparate. Levantei a mão para fazer uma pergunta mas quase fui destroçado por uma encarada furiosa. Caiu um silêncio mortal na sala. O professor disparou sua artilharia...
            - Antes de começarem a fazer as perguntas, que servem apenas para mostrar o vosso mais absoluto despreparo para entrar numa Instituição de Ensino como a USP, vou colocar umas equações para explicar o assunto! Exijo o mais absoluto silêncio. Isto aqui não é cursinho!!!
            Você tirou um papel do bolso e copiou umas equações matemáticas com integrais que deixou todo mundo estarrecido.
            - Façam o favor de copiar! Vocês não acham este material em nenhum livro publicado no Brasil. Está num livro alemão da lista de livros que os senhores deverão comprar! Copiem logo, porque tenho que colocar mais coisas nesta lousa.
            Mas como eu era um tanto quanto metido e conhecia alguns veteranos, já tinha te visto no meio do comitê de recepção aos calouros, desconfiei que tinha algo de errado no ar, e não copiei. Você veio brigar comigo, mas eu pus uma cara meio de troça e que quase te fiz cair na gargalhada... Percebi que esse Clemens não era professor mesmo e que estava se segurando pra não dar risada, abaixei os olhos e murmurei.      
            - Desculpe prof. Clemens, estou sem óculos de perto.
             Você resmungou um monte em alemão, virou para a lousa e perguntou em tom de desafio, apontando para uma integral.
            -  Alguém sabe o que significa este sinal?
            O silêncio foi quebrado por um tímido cochicho de uma turminha de moças lideradas por uma coroa, que depois recebeu o apelido de “Alto Comando”. Eram todas muito sérias compenetradas, esforçadas, as futuras cientistas... mas um tanto quanto mal humoradas. Mesmo elas não se atreveram abrir a boca.
           - Tem alguém aqui capaz de colocar a continuação dessas equações?
           
Aí, um colega cujo nome esqueci, um baixinho, meio narigudo, cara de italiano, levantou seriamente, foi até lá e passou a colocar um monte de integrais. A turma copiava com a maior dificuldade, evidentemente sem entender nada. Finalmente o moço disse ao professor que tinha chegado ao fim.
            - O senhor tem certeza que tudo isso aí está correto?                 .
            - Claro, professor.
            - É bom mesmo! Os senhores sabem por que é bom? Sabem?
            Desfrutou do silencio reinante, fez uma pose teatral e exclamou...
            - É por que eu não entendi nada! Bicho é burro mesmo!
            E disparou na maior gargalhada.       
           Imediatamente, um grupinho de veteranos que estavam misturados na classe começaram a gritar.
            - Bicho é burro! Bicho é burro!
            O rapaz das equações, que era calouro, tinha começado o curso de física, mas resolveu fazer biologia. A turma do trote foi lá pedir para ele ajudar nessa aula louca.

            E então, Elmer? Você, que andou levando umas pancadas mais violentas da ditadura, conseguiu lembrar desse lance?

             receba um abraço de seu velho amigo

             Suirad Verachinius

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