Moro num simpático
bairro de ruas arborizadas, quase na periferia de S. Paulo. Originalmente era
um loteamento muito simples, reservado a funcionários públicos, que escapou
incólume das avenidas e da sanha devoradora das imobiliárias. As casas de dois
ou três dormitórios projetadas para os modestos funcionários públicos aposentados
passarem uma velhice respeitável, hoje parecem palácios, se comparadas com os
maravilhosos e moderníssimos apartamentos de três dormitórios distribuídos em
exíguos setenta metros quadrados e divididos por paredes feitas de algo
semelhante a papelão.
Porém...
Sempre tem um
porém. E o pequeno porém levou a uma situação, digamos... estressante. Imagine
o desocupado leitor, que graças à invasão avassaladora do Grande Deus
Automóvel, todos os moradores fizeram suas garagens, ou coberturas
apertadíssimas, com os portões abrindo para fora, para preservarem seus
maravilhosos veículos.
E acontece que
entre os portões para os carros da casa do meu vizinho e a minha sobrou um
espaço de meio fio onde parece que dá, mas não dá, para estacionar. A rua é
muito estreita e a manobra para enfiar o carro pelo portão a dentro fica
irrealizável caso algum veículo ocupe o tal espaço.
Mas meu vizinho, Dr. Ataulfo Lagomorfa, sempre deixava seu carro na frente de meu
portão. Ele era um senhor, com finos bigodes perfeitamente aparados, de seus
sessenta e poucos, muito gentil e educado, sempre usando ternos impecavelmente
limpos e passados, ornados por simpáticas gravatas borboleta. Gostava de usar
umas palavras em francês e beijar a mão solenemente, quando encontrava com
alguma representante do sexo feminino durante seus passeios.
E eu, após inúmeras tentativas de colocar o recém
adquirido motivo de minha felicidade garagem a dentro, resolvi pedir muito
humildemente ao Dr. Lagomorfa que fizesse a gentileza de não deixar seu carro
naquele lugar porque...
Ele me fazia ver muito polidamente que eu devia parar
de aborrecê-lo por trivialidades.
E continuava a deixar seu carro lá...
Fiz tudo para convencê-lo, mas ele sempre me provava
que eu era um velho ranzinza e chato.
Tentei ser um pouco mais enfático, até quase
agressivo, mas Dr. Ataulfo Lagomorfa
demonstrava-me que eu era um louco.
E... continuava obstruindo minha garagem.
Um belo dia, um tanto deprimido após o Dr. Lagomorfa
me convencer quão vil eu era por aborrecê-lo com detalhes manobrísticos, num
impulso de anti-consumismo, vendi meu carro.
Bem...
A partir desse dia o meu vizinho nunca mais estacionou
junto ao meu portão.
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