segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O VIZINHO DO RANZINZA

                     

    Moro num simpático bairro de ruas arborizadas, quase na periferia de S. Paulo. Originalmente era um loteamento muito simples, reservado a funcionários públicos, que escapou incólume das avenidas e da sanha devoradora das imobiliárias. As casas de dois ou três dormitórios projetadas para os modestos funcionários públicos aposentados passarem uma ve­lhice respeitável, hoje parecem palácios, se comparadas com os maravi­lhosos e moderníssimos apartamentos de três dormitórios distribuídos em exíguos setenta metros quadrados e di­vididos por paredes feitas de algo semelhante a papelão. 
    Porém...
    Sempre tem um porém. E o pequeno porém levou a uma situa­ção, digamos... estressante. Imagine o desocupado leitor, que graças à invasão avassaladora do Grande Deus Automóvel, todos os moradores fizeram suas garagens, ou coberturas apertadíssimas, com os portões abrindo para fora, para preservarem seus maravilhosos veículos.
 E acontece que entre os portões para os carros da casa do meu vi­zinho e a minha sobrou um espaço de meio fio onde parece que dá, mas não dá, para estacionar. A rua é muito estreita e a manobra para enfiar o carro pelo portão a dentro fica irrealizável caso algum veículo ocupe o tal espaço.
Mas meu vizinho, Dr. Ataulfo Lagomorfa,  sempre deixava seu carro na frente de meu portão. Ele era um senhor, com finos bigodes perfeitamente aparados, de seus sessenta e poucos, muito gentil e edu­cado, sempre usando ternos impecavelmente limpos e passados, ornados por simpáticas gravatas borboleta. Gostava de usar umas palavras em francês e beijar a mão solenemente, quando encontrava com alguma representante do sexo feminino durante seus passeios.
E eu, após inúmeras tentativas de colocar o recém adquirido motivo de minha felici­dade garagem a dentro, resolvi pedir muito humildemente ao Dr. Lago­morfa que fizesse a gentileza de não deixar seu carro naquele lugar por­que...
Ele me fazia ver muito polidamente que eu devia parar de abor­recê-lo por trivialidades.
E continuava a deixar seu carro lá...
Fiz tudo para convencê-lo, mas ele sempre me provava que eu era um velho ranzinza e chato.
Tentei ser um pouco mais enfático, até quase agressivo, mas  Dr. Ataulfo Lagomorfa demonstrava-me que eu era um louco.
E... continuava obstruindo minha garagem.
Um belo dia, um tanto deprimido após o Dr. Lagomorfa me convencer quão vil eu era por aborrecê-lo com detalhes manobrísticos, num impulso de anti-consumismo, vendi meu carro.
Bem...
A partir desse dia o meu vizinho nunca mais estacionou junto ao meu portão.


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