terça-feira, 28 de janeiro de 2014

UMA HISTÓRIA ANIMALESCA!


                                      UMA CUSPIDA MILIONÁRIA

         Eu tenho um primo, que é um sujeito bem interessante. Apesar de seu aspecto muito tranquilo,  andou perambulando pela Antártida, onde teve umas experiências bastante trepidantes. Trabalha com satélites artificiais, num centro de pesquisas espaciais, e é ligadissimo em novidades tecnológicas importantes. Outro dia me mandou um incrível vídeo de um raio que sobe, filmado em câmara lenta, nas proximidades do pico do Jaraguá, em Sampa. Somente relembrando meu querido leitor...  para se obter o efeito chamado “câmara lenta”, na relidade filma-se com um sistema que captura velozmente as imagens. Antigamente, quando se usava filme, o filme na máquina filmadora rodava muito depressa, e quando era projetado em velocidade normal, as coisas apareciam com movimentos mais lentos. Esse vídeo foi feito com uma velocidade correspondente a vinte mil quadros por segundo. Um sistema normal de TV usa vinte e cinco. Portanto o movimento aparece cerca de mil vezes mais lento... aí tem o link que mostra o raio subindo lentamente, com uma luzinha na ponta...

      Então, quando respondi ao meu primo, lembrei de um fato que ocorreu quando eu, recém formado, trabalhava como bolsista da Fapesp no departamento de zoologia da USP.
         Eu fazia muitas fotos de bichos. Uma vez eu e meu saudoso amigo, professor Sergio Rodrigues, resolvemos montar um aquário para um animal estranho, uma enorme minhoca com pernas e outros acessórios que vivia enterrado nas areias de nosso litoral. O Sergio fez um aquário quase bidimensional com duas placas de vidro separadas por poucos centímetros, praticamente a largura do bicho. Enchemos com areia e água do mar, mas tinha que ficar no escuro, porque a luz interferia no metabolismo do estranho animal. Para vê-lo era uma dificuldade, acendíamos uma luzinha mínima e tínhamos que esperar a vista se adaptar, para conseguir ver aquele ser gelatinoso abanando uns leques que possui na barriga. Bastava acender a luz para filmar, que ele parava. Filmamos com uma velha câmara 16 milímetros Bolex, bem difícil de ajustar, mas conseguimos alguns segundos, o suficiente pra mostrar os movimentos do... lembrei o nome!!! Chaetopterus sp. !!!
         Mas a história que eu lembrei ao receber a mensagem com o vídeo do raio, foi quando apareceu, lá na Zoologia, um francês para filmar um bicho estudado por um professor com quem eu tinha um ótimo relacionamento, também francês.
         O bicho é um Peripatus sp. Um ser parecido com centopeia, que é muito importante, pois é considerado a transição entre os vermes e os artrópodos..!  Além disso esse bichinho de alguns centímetros de comprimento, um dos mais antigos que existe em nosso fantástico Planeta Terra, é considerado um fóssil vivo. 
         Ele vive em matas úmidas de Minas Gerais, já era bem raro na época em que o "causo" se passou, e se alimenta de uma forma tão estranha, que interessou a uma das melhores equipes produtoras de filmes científicos daqueles tempos não tão remotos...
           O peripatus, para comer, faz uma coisa parecida com o que o sapo faz para pegar a coitada da mariposa (...que fica dando vorta em vorta da lâmpida pra sisquentá). O feioso batráquio desenrola uma língua enorme, cheia de baba que gruda na coitada da mariposa e glopt. Aliás, outro dia eu li um artigo falando que as pererecas só conseguem ver os insetos que se movem...
        Cada coisa que descobrem. Aliás, cada coisa que estudam!!!... Imaginem só... estudar o que as pererecas enxergam???!!!
         Voltando ao tal peripatus... Ele captura suas vítimas de forma parecida, só que em vez de desenrolar uma língua, ele dá uma cuspida gosmenta, que sai de perto de suas antenas, vai grudar no alvo e volta com uma velocidade impressionante. A gosma seca depressa e imobiliza a pobre mosquinha. Depois que captura sua vítima, o simpático perípatus faz um furo nela, despeja o suco digestivo, espera um pouco e toma com seu canudinho bucal... 
       E a turma dos franceses veio filmar esse estranho banquete animalesco.
        Tentei falar com o cinegrafista, mas o cara ficou pouquíssimo entusiasmado em ter um nativo de la bas bisbilhotando seu trabalho. Precisei de muita conversa para ele me deixar dar uma olhadinha durante uma seção de filmagem.
        Os franceses vieram super equipados... trouxeram uma filmadora super ultra high speed, acho que era Hitachi, que filmava a 1000 quadros por segundo. Era a maior maravilha em termos de câmara lenta. Mas na época estavam começando aparecer as primeiras gravações em vídeo tape, e a máquina usava filme fotográfico. Era uma verdadeira astronave plantada no meio de uma sala transformada em estúdio cinematográfico, com montanhas de caixas de equipamentos, luzes, fios, tripés, lentes e uma quantidade infinita de aparelhinhos e dispositivos, tão modernos quanto misteriosos. E assim que foi possível, lá fui eu curiosíssimo, por que já trabalhava com fotografia e estava começando a filmar.
          O problema dessas filmagens em altíssima velocidade é iluminar o que vai ser filmado, por que a duração de cada fotograma fica muito pequena, da ordem de frações de milésimos de segundo. E nosso bichinho vive meio enterrado no solo das matas, portanto lugares escuros, tem hábitos noturnos e são refratários a qualquer tipo de luz. Poucos segundos de luz eram suficentes para deixar o animal paradinho, talvez numa reação de proteção.
         Aí pegavam um peripatus com fome e alguém jogava uma mosca morta e todo mundo rezava para o bichinho dar sua super cuspida extra speed...
         O fotógrafo cinegrafista era super caprichoso, um cara muito bom, que já tinha ganhado toneladas de prêmios. Colocava um perípatus numa placa de vidro e a câmara filmava meio em contra-luz através da placa, contra um fundo escuro, para a cuspida ser retratada com todos seus charmosos detalhes. A coisa era realmente bastante complicada...  A cada tentativa,  era necessário limpar os restos da gosma da tentativa anterior e os detritos deixados pelas patinhas sujas de terra úmida...
           Aí !!! Tudo pronto?! luz, câmara, ação e...
         Acendiam aquelas montanhas de watts de luz, ligavam a câmara que emitia um zumbido furioso como se fosse um ônibus elétrico e engolia uma lata de 400 metros de filme em poucos segundos. Enquanto o especialista francês em arremesso de moscas, escolhia um ângulo para o bichinho ver direito, arremessava a mosca e...
         - Ah. Non... Merde!!! Pas possible!!!
         No dia em que fui lá assistir, eles passaram algumas horas e não conseguiram nada. Gastaram alguns quilômetros de filme!!! 
      Depois de ter assistido umas três tentativas, resolvi sair porque os caras estavam bastante irritados e aparentemente no limite da paciência... os  bichos não estavam colaborando e faziam as coisas na hora e no lugar errado!!! Qualquer comentário que eu fizesse ia sobrar pra mim... Saí sorrateiramente depois de uma das tentativas fracassadas.
         Mas fiquei sabendo que no dia seguinte conseguiram uma tomada que valeu todo o esforço. Assim que terminaram, juntaram todas suas valiosíssimas tralhas e se mandaram, caramba... nem vieram falar comigo!!!!
      Ao que parece, ficou tão espetacular que deu mais um premio para a equipe...
         Milhares, talvez dezenas de milhares de dólares por uma cuspidinha!!!

* Para a turma que não se lembra das aulas de biologia... os artrópodos são os seres mais abundantes do planeta. É o grupo dos insetos, aranhas, crustáceos, centopeias... cuja principal característica são essas patinhas parecidas com as dos camarões e das coitadas das baratas...
O grupo ao qual os Peripatus sp. pertencem se chama Onicophora. Para quem gosta de coisas interessantes esses animais são um prato cheio. Lá na wikipedia tem uma boa matéria...
O filme com o Chetopterus infelizmente se perdeu. Talvez eu tenha doado ao departamento de Zoologia, não me lembro. Aliás a ocorrência desse bicho em nossas costas foi um acontecimento importante na época. Provavelmente não existe mais por aqui...





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