Como fazia todas as segundas-feiras,
Ronivelton saltou rapidamente do beliche, quase pisando sobre a irmãzinha que
dormia em baixo.
Desde que
vira as gêmeas, famosas no bairro por terem o nome de personagem de novela, a segunda feira era o dia em que levantava da
cama bem cedinho. Saia logo de casa para ver as duas mocinhas indo para o ponto
onde apanhavam o ônibus escolar junto com outros jovens do “lado bom” do
bairro.
A
mãe, já estava na cozinha apertada, na qual a geladeira e o fogão disputavam o
espaço com uma mesa capenga e com a pia coberta pela pouca louça da
família. Toda desarrumada e despenteada expelia seu costumeiro mau-humor
matinal, reclamando de tudo, principalmente de seu companheiro, que roncava
semi-nu exalando tanto álcool que o cheiro já não cabia mais no quarto.
Ao
perguntar se já tinha café, Ronivelton transformou-se no pára-raios de toda a
tempestade que estava contida na mãe.
Depois chegou a irmã mais velha, desafiadora e provocativa, que tornou
o ambiente matinal mais insuportável. Mas a perspectiva de ver as garotas o
deixava completamente impermeável, ouvindo silenciosamente o discurso de sua
mãe e as alfinetadas da irmã, fato esse que as deixava ainda mais agressivas.
Mas hoje era
segunda-feira, finalmente.
A
família era do sertão de Minas, mas já tinham morado uns dez anos numa pequena
cidade do interior de São Paulo, de onde saíram depois que a mãe fora
abandonada pelo marido. Foi morar num subúrbio da Grande São Paulo, num bairro
originalmente de classe média, que estava sendo engolido pelas invasões e
favelas de blocos dos loteamentos clandestinos, que iam corroendo toda a área
de preservação ambiental. Ronivelton ainda lembrava com saudade da casa de
tijolos caiados do sítio onde seu pai trabalhava como caseiro. Tinham até umas
galinhas e uma rocinha de milho, feijão e essas coisas. Ele ainda lembrava
também o choque que foi a mudança para esse bairro com um monte de casas
amontoadas, umas ao lado das outras. Mesmo agora com seus quinze anos ainda
estranha todo esse barulho de aparelhos de som ligados no último volume, a
gritaria na rua, as brigas e os escândalos na vizinhança, os carros passando
praticamente dentro do pequeno cômodo usado com a função de sala sempre coberto
de uma poeira preta.
Mas
a perspectiva de rever as duas irmãs gêmeas, loiras, todas arrumadinhas indo
para a escola...
Teve um dia que ficou
esperando atrás do muro da esquina e quando elas se aproximaram, veio andando
como se nada houvesse, apenas para passar perto delas. Ah, que aroma
delicioso... Ainda por cima perfumadas! Um perfume suavemente delicioso, tão
diferente daquele cheiro forte e enjoativo das amigas da irmã e da mãe.
Agora toda a
segunda saía mais cedo para ir cuidar do jardim da dona Márcia, que
fica na mesma rua onde as meninas moram, só para cruzar com elas e sentir o
doce aroma. Mesmo depois de mexer na
grama e cavoucar a terra aquele cheiro maravilhoso ficava o dia inteiro na sua
memória.
O dia
inteiro não. Era a semana inteira. Ele chegou mesmo a pedir para dona Márcia se
não podia vir mais um dia, afinal um jardim daqueles na casa do doutor Jorge,
médico famoso, com carro e tudo merecia um tratamento especial.
Ronivelton
não conseguia saber qual era a mais bonita, estava apaixonado pelas duas, que
por sinal eram muito, mas muito parecidas mesmo. Se encontrasse apenas uma de
manhã e outra à tarde não saberia dizer se era a mesma. Ruth ou Rachel. Era
assim que os nomes estavam escritos no jornal do bairro, que na mais absoluta falta
de assunto, publicou a notícia sobre as meninas com o nome de garotas da novela de televisão que ele nunca tinha visto, mesmo porque na época dessa novela ele nem imaginava o que era televisão.
Finalmente
saiu de casa já se deleitando com a visão maravilhosa... e lá foi nosso Ronivelton, a passos apressados, antegozando o doce e
inebriante aroma que delas exalava, preparando-se para ficar atrás do muro como quem nada quer.
Mas nesse dia, ele ainda esperava ansiosamente as duas, que já demoravam uma eternidade,
quando no final da rua surgiu o ônibus escolar. “Puxa, que droga, hoje elas não
vem... Acordei cedo a toa”.
Mas
ao virar-se para ir para o jardim de dona Márcia, quase deu um encontrão numa
das garotas, que vinham correndo para não perder a condução. A menina teve que
desviar num movimento brusco e esbarrou no braço de Ronivelton,
chocou-se com a irmã, que quase caiu, mas conseguiram se recompor e dar um
sinal ao motorista, que já ia passando direto.
Ronivelton
ficou parado, sentindo ainda o roçar daquela pele tão suave no seu braço.
Imediatamente levou-o ao nariz para sentir o doce aroma, e ao dar o primeiro
passo para ir ao trabalho esbarrou com o pé numa bolsinha de couro
sintético, cor de rosa, evidentemente. Certificando-se que ninguém o observava,
num gesto rápido apanhou a bolsa e enfiou embaixo de sua roupa. Voltou correndo
para casa e sem que ninguém percebesse guardou a bolsinha no meio da confusão que era a prateleira onde ficavam suas roupas. Ao sair novamente, deu uma desculpa esfarrapada para sua mãe que
aos gritos lhe dizia para ir logo para o trabalho.
Cortava
a grama, arrancava o mato, aparava a cerca viva, varria, pensando na bolsinha,
imaginando o que haveria dentro. Como esse dia foi comprido! Ronivelton sonhava
acordado...
Assim
que acabou o serviço, foi correndo para casa, e deu um jeito de levar a
bolsinha cor de rosa ao banheiro quando foi tomar banho, o único momento de sua
vida em que ficava sozinho. Sentado no vaso, abriu seu tesouro. A primeira
coisa que pegou foi um lenço rendado com aquele perfume, onde mergulhou o
nariz. Uns lápis de cor, uma caneta esferográfica super bacana, um estojo de
maquilagem com umas coisas estranhas, um baton!... destampou, cheirou, passou
sobre o dorso da mão desenhando uma boca na qual deu um beijo.
-
Vai tomar logo essa porcaria de banho ou vai demorar muito! gritou a irmã do
outro lado, enquanto dava um soco na porta.
Ainda
deu uma rápida olhadinha no caderninho de endereços, mas a irmã não parava de
chatear. Tomou seu banho rapidamente e saiu xingando com seu tesouro escondido.
E essa noite dormiu com o lencinho da menina cobrindo o travesseiro. Imaginava
a cena da entrega da bolsa para a dona... Finalmente iria receber um sorriso,
uma palavrinha de agradecimento... como vou falar com ela, e se ela me convidar
para entrar na casa dela, não fica aí do lado de fora, espera que vou abrir o
portão, ela segura minha mão para me agradecer, eu dou um beijinho nela quando
for embora, a voz dela... obrigada... e o perfume vai ficar na minha cara. Aí nos outros dias vai dar para conversar...
E
no dia seguinte, mal percebia a ranzinzice da mãe e as provocações da irmã. Estava quase em transe esperando para ir até a casa das garotas numa hora em que
tinha certeza que estariam lá.
Finalmente
saiu correndo. Ao chegar diante da casa delas sentia seu coração
palpitar. Esperou um pouco tentando se acalmar, finalmente criou coragem e
tocou a campainha. Ninguém apareceu. Esperou mais um pouco para tocar
novamente, até que através das grades do portão divisou uma senhora, vestido
comprido escuro e sapatos de salto alto fechados, alta de óculos, cabelo preso
formando um coque, com uma cara de poucos amigos.
-
O que você quer, garoto?, ela gritou lá da porta, com medo de se aproximar.
Ronivelton,
que já estava acostumado a ser discriminado pela sua condição de mestiço e
pobre, percebeu a situação. Ela vai achar que estou pedindo dinheiro ou
comida... e agora?... Então foi ao assunto direto.
-
Vim entregar a bolsa que uma das suas filhas deixou cair ontem.
Dona
Olga, ainda um pouco desconfiada e um tanto temerosa titubeava em aproximar-se
do portão.
-
Bolsa? Que bolsa? Mostra ela!
...Que
saco, pensou Ronivelton, agora tenho que pagar o mico de ficar
agitando essa bolsinha aqui na rua...
-
Está aqui, veja! Posso entrar... ou a senhora pode vir até aqui?
- E por que você só trouxe ela hoje? A bolsa foi... ela perdeu a bolsa ontem
quando ia para a escola, e você só entrega agora? Virou-se para dentro e
gritou:
–
Maria! Vem aqui falar com o garoto que
está no portão.
Daí
a pouco a Maria, uma tradicional cozinheira negra e obesa, aproximou-se
lentamente balançando todas suas banhas, num rebolar espantoso.
-
Oi, meu filho... você trouxe a bolsinha da Rutchi, foi? Que bom. Elas estavam
achando que você tinha se aproveitado da pressa, para roubar. Não leva a
mal não, você já sabe como são as coisas, não é mesmo?- Maria fez uma pausa e perguntou olhando bem firme para o Ronivelton - Mas... Está tudo aí, né.
A
decepção de Ronivelton atingira o máximo. Entregou a bolsa para a cozinheira e
retrucou:
-
Qual é, dona?! A senhora acha que se eu tivesse tirado alguma coisa ia vir até
aqui, pagar esse mico todo e ainda fazer o papel de ladrão?
-
Tudo bem, filho. Você tem mesmo cara de bom menino... Aliás acho que já vi você
por aqui. Mas espera aí um pouquinho que vou levar para dona Olga.
Ronivelton,
um garoto cheio de esperanças, imaginou que a Ruth ainda viria lhe
agradecer pessoalmente, oferecer um copo de água, alguma coisa assim. Esperou,
sem conseguir tirar os olhos daquela imensa bunda rebolante, que se afastava
lentamente. Mas, daí a pouco quem se aproximou foi dona Olga.
-
Parabéns, meu jovem, tome, pegue essa recompensa.
Ao
ver a nota de dez, Ronivelton sentiu um desabar de mundo, que chegou até lhe provocar um certo embrulho no estômago. Olhou para o dinheiro e depois para a
mulher.
-
Enfia! - disse e saiu correndo.
Acontece que
a TV resolveu reprisar a famosíssima novela da Ruth e da Rachel, e para ganhar
audiência resolveram entrevistar as meninas Ruth e Raquel da vida real na própria casa, com a mãe, e essas
baboseiras todas.
E, para finalizar nossa estória, num desses programas
dominicais que todo mundo assiste, inclusive nosso Ronivelton, aparece dona
Olga dizendo:
- ... hoje
as duas são tão conhecidas que se tornaram imunes até a assalto. Imagine que
esses dias, Ruth perdeu a bolsa e um trombadinha veio lá em casa devolver. Ele
disse que sabia que era de uma das gêmeas. Até um trombadinha, não é lindo?!
Trombadinha...
trombadinha...
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