O
TIO DO UILIÃO
Conheci o Uilião quando ele ainda era garoto. O pai fez o
encanamento da casa onde morei, e uma irmã foi babá de meus
filhos do segundo casamento. Vieram do sertão de Minas e se instalaram numa
fazendinha semi abandonada. Acontece que o dono morreu e eles foram ficando por
lá, construíram um barraco, depois uma casinha e ainda não tinha
aparecido ninguém para revindicar a propriedade do lugar que é bem bonito.
Tem até um laguinho e um insólito portal japonês no meio da mata.
A primeira vez que
apareceu na minha casa ainda chamava Uílliams, assim mesmo, com U no começo,
acento no í e dois "eles". Logo que tirou seus documentos, gostava de mostrar para a gente ver como escrevia seu nome. Ia lá para acompanhar
a irmã, gorducha comilona, muito sorridente, que às vezes tomava conta de meus
filhos quando eu saia com minha ex mulher. Era um rapazola bonito, forte, alto,
um tanto quanto acanhado, que ficava super sem graça quando minha ex aparecia
toda exibida, se divertindo em provocar o garoto.
Bem, o Uilião foi
crescendo, virou homem, mas apesar de trabalhar como telhadeiro e pegar umas
empreitas de construção achava bacana assumir uns ares de malandro, e passou a
queimar fumo e cheirar pó. Logo ficou com fama de bandido, mas fora consumir drogas eu nunca soube que tivesse feito algo que justificasse tal
fama.
Depois de adulto virou um cara altão forte, que fazia sucesso com as mulheres, muito simpático e
brincalhão. Quando aparecia em casa já ia pegando meus filhos nas costas e saía
carregando eles para lá e para cá como se fossem uns brinquedinhos. Era um bom
carpinteiro e quando queria, trabalhava bem com madeira bruta, mas muitas vezes aparecia para fazer o
serviço completamente chapado e dava umas tremendas mancadas.
Eu contratei o
Uilião para reformar um barracão, que ele mesmo tinha construído na minha casa
há alguns anos. Era feito com madeiras do mato e eucaliptos, e por causa de
umas traves que cederam estava com problemas de goteiras precisando de um bom trato. Num belo dia, lá
estava ele e sua equipe de malucos trabalhando e quando chegou a hora do almoço
o Uilião me convidou para ir numa churrascaria rodízio onde a dona gostava dele
e lhe dava um bom desconto desde que, ele ficasse com ela... e aí já aproveitou
para se gabar que a a dona era gamadíssima porque ele fazia isso e aquilo...
Eu fiquei assim na
dúvida..
- Vamos, meu... O
meu tio está lá na cidade, ele está velhinho sabe, quero ver se acho ele lá no
posto onde... ai aproveito para encontrar com o cara que me arruma farinha.
- Olha Uilliams...
eu estou fora dessa. Não quero saber dessa estória de dar dinheiro pra bandido
traficante... eu hein!!! E essa coisa de farinha vicia.
- Ah meu, viciado...
isso é encanação tua. Pó não mata ninguém...
- Olha, não sei se
mata, mas é uma brincadeira muito perigosa e vicia sim... é aquela coisa
gostosa que te joga pra cima, mas acontece que é uma viagem que vai ficando
cada vez mais curtinha, com uma ressaca cada vez maior... aí você começa pegar
sempre mais e entra numa roda filha da
puta... É ou não é?!
Ele ficou calado
um tempinho e perguntou... Afinal você vai ou não vai? Olha quer saber eu vou, mas não quero ver o
teu lance da farinha, tá bom???
Falou...
Mal entramos no
carro dele, um desses carrões antigos cheio de luxos, mas caindo aos pedaços,
já começou a contar da fulana com quem estava transando, do marido dela que
estava desconfiado e se descobrisse ia matar os dois, da viagem que tinha feito
com a fulana que trepava como louca
porque o marido era meio brocha e que...
... e eu achando
que era tudo papo dele para se mostrar, mas aí ele abre o porta-luvas e mostra
um revólver embrulhado num pano.
- Pô Uilião! O que é isso meu!
Você tá ficando louco meu, assim alguém te pega mesmo! Aliás tá ficando, não...
Já está completamente maluco! Andar armado!!!... Olha você sabe que cara armado
acaba enfrentando coisas que não iria enfrentar e assim a chance de se foder só aumenta! Cara! Pensa na
tua família... tuas filhinhas tão gracinhas.
- Olha meu, eu
ando por umas quebradas que se não tiver um berro ninguém respeita. Entro nos
piores lugares daqui! Pô meu... você sabe o que tem de bandido por essas
quebradas.
- Bem... sei lá.
Mas vê se manera porque...
- Ih, cara! Não esquenta.
Você sabe que não sou de me meter em confusão.
- Ah!! Estou
vendo!!! Essa foi boa...
Caramba, pensei...
"eu me meto em cada uma. Agora vou ficar zanzando de lá pra cá, com esse
maluco que parece que virou bandido mesmo. Bom o negócio é relaxar. Acho que
ele vai atrás do tio... então não é hoje que ele vai se ferrar. Aí seria o
maior azar..."
Só que, para complicar mais ainda, ele acendeu um
charo... - Ó dá um pega aí meu!
Então eu até dei
um tapinha de leve, só pra dar uma onda... uma boa relaxada. No fundo eu sabia
que apesar de um tanto quanto desvairado, meu amigo me respeitava muito e não
ia me por numa fria. Mas as conversas dele eram de arrepiar os cabelos de um
careca!!! De repente ele me sai com essa...
- Olha.. Estou
pensando em assaltar um carro forte... tem um que passa por aquela estrada super
estreita perto da...
- Agora você está
tirando uma da minha cara... Um carro forte, meu!
- É isso mesmo, pô! Tem uma curva bem fechada, ao
lado de um barranco cheio de mato. É só deixar um tronco bem grosso de eucalipto
amarrado em cima, e quando ele passar a gente corta a corda e Plam! Cai bem em
cima... quero ver se abre ou não abre a porta daquela porra!!!
- Sim sim... E os caras vão abrir a porta e dizer
entre por favor, a gente não vai fazer nada. Pô meu!!!... se fosse tão fácil...
- ... mas lá
dentro tem uma puta grana, que dá pra viver o resto da vida com ela.
- é...
provavelmente as notas estão numeradas, marcadas.. olha Uílliams, se você
quiser ganhar dinheiro roubando, tem que roubar de pobre porque rico sabe se
defender muito bem.! Você só vai se ferrar... entra em cana na primeira...
- Pô meu, mas aí é
sacanagem... roubar de pobre é muita sacanagem... Qual é?!
- É mesmo...
mas é assim que as coisas funcionam. E é
assim que os caras ficam ricos! Não é como os bancos fazem?! Usam o
dinheiro de todo o mundo pagando uma merreca, e quando emprestam metem um juro
lá em cima!
- Ih cacete! Lá
vem você com essas ideias meu... e, porra! Você acha que eu vou entrar numa
dessas? Assaltar um carro forte... Tenha dó. Precisa de um canhão!! E.. Pô,
qual é? Você leva tudo a sério cara!...
A nossa conversa
era sempre assim, meio estapafúrdia, porque ele apesar do pouquíssimo estudo
era um cara bem inteligente e muito ativo, sempre inventando e procurando
coisas novas. Gostava de perguntar... e a maioria das vezes prestava bastante atenção quando eu falava de alguma coisa que ele não sabia. Vivia viajando com esses carros arrebentados, pegava trabalho em lugares distantes e
quase inacessíveis. Mas com certeza o Uilião era um sujeito que dava o maior trabalho para o seu
anjo da guarda, sempre aparecia machucado. Tinha a mão toda lanhada, faltando a
ponta de uns dois ou três dedos que tinha perdido nas máquinas.
Andar de carro com
ele guiando era assustadoramente surrealista... Saía na maior disparada. De
repente via uma mocinha bonita num ponto
de ônibus, parava na frente e falava aquelas gracinhas idiotas para ela. E eu,
no lado do passageiro ficava bem na cara da garota, sem saber o que fazer, com
o cabeção dele quase esfregando no meu nariz. Acho que fazia de propósito, para
me provocar ou me deixar sem graça.
Bem, finalmente
paramos junto a um quiosquezinho bem simples feito de tábuas sem pintura, que
vendia refrigerantes e pacotes de salgadinhos. Nem preciso dizer que meu amigo
conhecia toda a família da vendedora com carinha meio sem vergonha. Ele chegou
dando risada e ia começar a chavecar a moça quando...
- Olha lá o meu
tio, olha ele lá! Perto do ponto de ônibus!
- Onde? O que tá
de bonezinho verde?
- Não o outro, de
cabelo bem branquinho. Tá vendo? Trabalhou tanto que pirou, tá meio maluco.
Era um mulato
escuro de bigodinho bem fininho, com cara de bonzinho e um ar tranquilamente
cansado.
O Uilião já chegou falando muito. Oi tio, como
vão as namoradas... e o velho olhava pra ele meio espantado, parecia que não
tinha reconhecido o sobrinho, que despejava um monte de bobagens na cabeça do
coitado, falando de farras e se ele não queira fumar um... O velho só olhando, mas de repente perguntou
onde era a churrascaria.
Íamos andando até
o carro e num momento em que o tio se afastou um pouco, o Uilião me contou que
o tio Julio era motorista de ônibus... Sabe ele comprou um terreninho, aí resolveu fazer uma casinha, aí dava montes de horas extra... trabalhou tanto
para pagar que pirou. Foi ficando esquecido, e não conseguia falar, ou melhor tentava falar mas só balbuciava
coisas que ninguém entendia. Os amigos e a turma do emprego ficavam caçoando
dele, até que ele conseguiu uma licença e foi se tratar. Mas como era velho
aposentaram ele da direção. Só ia lá na garagem e ficava à disposição para fazer o que
pudesse.
Entramos numa
churrascaria rodízio na beira da estrada, tomamos aquela pinguinha e sentamos
perto de uma televisão. O tio Julio desatou a falar e não parava mais. Era
desdentado e ia falando enquanto comia deixando escapar um monte de perdigotos.
Contava casos de pessoas que evidentemente eu não sabia quem eram e a Tv
ligada atrapalhava mais ainda. Consegui entender que estava com problemas de
vista. Disse que não conseguia entender os números, olhava para o jornal e também não entendia, porque as coisas ficavam partidas horizontalmente. Repetia a mesma coisa várias vezes fazendo um gesto
horizontal com a mão para explicar como via tudo pela metade. E então reclamou
que era muito chato ficar na garagem bater o cartão e zanzar de um
lado para o outro. Aí falou que tinha umas carteirinhas... Carteirinhas, seu
Julio?... É carteirinhas aqui comigo. E abriu a carteira soltando fluxos de
farofa enquanto tentava explicar procurando as carteirinhas, que eram semelhantes a cartões de crédito. Essa aqui azul é do sindicato, serve para
viajar, posso tomar qualquer ônibus, para qualquer lugar do país, e posso levar
outra pessoa sabe, pra cuidar de mim...
- Olha aí,
Uilião... você que gosta de viajar pode levar o tio Julio... Vai viajar com
ele, meu.
E os dois começara
a dar muita risada, falando que iam viajar pelo Brasil inteiro e pegar tudo
quanto era mulher e aquele monte de bobagens.
E eu que nunca
havia conversado mais de trinta segundos com um motorista de ônibus almoçando
com tio do meu amigo! Um velho meio despirocado, que só estava por ali porque
era greve dos motoristas e a garage onde ele trabalhava estava fechada para
evitar confusões.
De repente... Eu
mal acreditei no que estava aparecendo na TV do restaurante...
Uma reportagem
sobre a greve dos ônibus!! As estações vazias, congestionamentos gigantes... imagens
de helicóptero que mostravam um lugar onde havia uma barreira de pneus pegando
fogo como protesto que fizeram numa rodovia...!!!
Realmente, uma coincidência incrível!
A história é verdadeira, sim...
ResponderExcluirCom umas pitadinhas a mais, pra ficar mais saborosa