terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

NA RIO SANTOS(parte1)

o professor sambista



           
         Era o início dos anos de chumbo, um período ruim da nossa história principalmente para jovens idealistas que acreditavam... acreditávamos... num monte de coisas e víamos as esperanças serem demolidas uma a uma. No final de 68 os militares aplicaram o AI-5, que exterminou completamente qualquer oposição democrática. Acabaram as assembleias, debates e até atividades culturais dentro do ambiente universitário, o que me levou a perder contato com amigos e colegas de outras escolas da Usp.
         Com exceção da fotografia, parei com todas atividades que não eram relacionadas com a faculdade e me esforcei o máximo para obter boas notas e conseguir uma bolsa de estudos... e consegui uma bolsa para fazer pós graduação e tese de mestrado em zoologia.
         O departamento de zoologia ocupava a metade de um dos dois edifícios mais antigos da lindíssima cidade universitária, cheia de prédios modernos lindos, áreas de preservação e alguns jardins maravilhosos como os do departamento de botânica. Era um prédio tradicional em forma de U, de dois andares, corredores larguíssimos com portas, janelas e pé direito muito altos. Os corredores abrigavam um  museu de zoologia, com armários, esqueletos, animais empalhados, vidros com espécimes conservados em alcool, numa das paredes havia uma gigantesca sucuri empalhada. As janelonas iluminavam bem o espaço e mostravam a linda e abundante vegetação que cercava o prédio.
         Era um ambiente agradável, onde os  professores mais velhos eram muito simpáticos e afáveis, num contato bastante informal com os mais jovens e com os bolsistas, que levou a formação de amizades e até casamentos. Foi aí que conheci o professor Sérgio, um pouco mais velho do que eu e que foi um dos melhores amigos que tive na minha vida. A minha primeira mulher, mãe de meus dois filhos mais velhos, era bolsista no andar de cima, ocupado pelo departamento de fisiologia animal.
         Um belo dia o Sergio disse que gostaria de me indicar, juntamente com mais outros bolsistas e uma jovem professora, para participar de uma expedição para coletar espécimes de um trecho do litoral do Estado do Rio, que seria alvo de profunda transformação devido à construção da Santos-Rio. Era organizada pelo museu de zoologia da secretaria de agricultura, cujo diretor, um compositor popular  conhecido, havia convidado elementos da Usp, com objetivo de por fim a um litígio acadêmico-burocrático que já durava um certo tempo.
         Depois de algumas reuniões embarcamos eu a professorinha, e os dois colegas, numa rural da secretaria da agricultura, pilotada por um simpático motorista que conhecia o Brasil inteiro, para uma trepidante viagem até as proximidades de Angra dos Reis. Trepidante não... na verdade era extremamente chacoalhante, uma verdadeira tortura para quem como eu tem uma coluna vertebral um tanto problemática, que quase desmanchou nas estradas rudimentares da época.
         O local que servia de base para nossas atividades era uma grande casa alugada, afastada da cidade cujo acesso passava dentro de uma  escola da marinha de guerra. Angra era uma cidade pequena, mas movimentada, que tinha duas características interessantes... passava um trem, com locomotiva, vagões, por dentro da cidade. E a outra característica era a espécie de fralda que os cavalos foram obrigados a portar, para evitar que o cocô emporcalhasse as ruas todas calçadas com paralelepípedos.
         O professor sambista era bastante famoso, por suas agradáveis composições e... pela sua chatice.
                ...na primeira noite após o jantar, ele nos recebeu com uma má vontade um tanto quanto explícita e reuniu todos os participantes para explicar qual era o objetivo dos trabalhos. Além de nós havia mais dois jovens biólogos que trabalhavam no museu de zoologia, um motorista e dois cineastas que estavam fazendo um filme sobre a região... um deles eu já conhecia, de um curso que eu frequentara, sobre filmes documentários.
          Ele nos explicou que, com a construção da rodovia Santos-Rio o litoral provavelmente seria bastante afetado, e nossa função era coletar e  catalogar, a maior quantidade possível de tudo quanto era bicho que a gente achasse nas praias e costões... que devido a falta de estudos a fauna era quase completamente desconhecida...  e assim conseguiríamos preservar algo que provavelmente desapareceria. 
         Achei que as criticas dele eram bastante procedentes, uma vez que as pesquisas científicas aqui no Brasil sempre foram feitas com grandes dificuldades. Enquanto ele explicava como iríamos trabalhar, me passou na cabeça... fiquei imaginando como faríamos essa coleta... fiquei pensando que como ele entende de estatística provavelmente tem algum um meio de organizar nosso material de uma forma quantitativa. 
            Terminou suas explicações e antes de encerrar fez a tradicional pergunta:
           - Está claro? Alguém tem alguma dúvida?
         Houve alguns  comentários, mas na minha cabeça eu estava diante do cara que havia pedido um tratamento matemático para aprovar minha bolsa, e pensei que realmente ele poderia ter alguma solução para o aspecto quantitativo, isto é, se deveríamos anotar a quantidade de espécimes coletados... e como deveríamos fazer. Então pensei um pouco e falei...
         - Bem, professor... eu fico imaginando nossa coleta, aí eu gostaria de saber se... Essa nossa coleta... ela vai ser apenas qualitativa ou se faremos algum tipo de análise quantitativa....               .            
         O cara ficou furioso!!! Se inflamou todo e começou me atacar... que eu era pretensioso, um típico recém formado que acha que é melhor que todo mundo só por que... por isso e por aquilo, mas que eu era igual ao pessoal da USP... No começo fiquei bastante constrangido e até assustado, mas ele desatou a fazer um vasto discurso meio sem pé nem cabeça, até meio ridículo, que deu tempo para me recuperar do susto e quando terminou com o dedo em riste, me encarando furiosamente...
         - Deu para o senhor entender?
         Eu respondi tranquilamente...
         - Não professor... o senhor falou muito... de umas coisas que não me dizem respeito,  mas não respondeu a minha pergunta. Eu só queria saber se dá para fazer algum tipo de análise quantitativa. E então...
         Fez-se um silêncio... daqueles...
         Ele ficou parado olhando para mim meio espantado, e eu continuei.
         - Mas acho que na realidade o senhor já respondeu. Vamos apenas  registrar a presença do espécime naquele local, certo?
         - É. Exatamente.
         - Obrigado.


         No dia seguinte, o professor passou o dia ás voltas com os cineastas, enquanto nós estudávamos as espécies já conhecidas de outras partes do litoral das proximidades e como faríamos para coletá-las. 
            Aí então, os cineastas e o professor....
           Mas não...
           ...não vou cansar meu adorável público...
          Na próxima semana vou contar uma aventura que tivemos na estrada....

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