inaugurei a Rio Santos (parte 2)
...às minhas queridas e meus queridos leitores que porventura estejam distraídos, aviso para ler a parte 1, antes desta
Na
manhã do dia seguinte o Professor passou às voltas com os cineastas, enquanto
nós estudávamos as espécies já conhecidas de outras partes do litoral das
proximidades e como faríamos para coletá-las.
Naquela
época, além da fotografia eu já me interessava muito por cinema. Tinha feito
alguns cursos muito interessantes, e arriscava umas filmagens com uma
velhíssima câmara 16 milimetros. Minha atenção ficou bem dividida entre as duas
atividades, e quando eles entraram com seus equipamentos na sala improvisada
como laboratório, fui lá bater um papo e mostrar as coisas que pudessem ter
mais interesse.
Mas
de repente ouvimos os gritos do Professor nos chamando para mostrar algo numas
rochas da costeira, cheias de ouriços do mar. Estava numa pedra um pouco mais
alta e lá de cima pediu para todo mundo
chegar mais perto, espatifou um ouriço na rocha e disse...
-Vejam
só está cheio de ovas! Isso é uma delícia!!...
...
e chamou os moços para filmarem como era divertido arrebentar os bichos na
pedra, chupar as suas ovas, vivinhas da silva, para o espanto de uns e horror
ou nojo de outros. Fez questão de mostrar alegremente a técnica correta de
bater o ouriço no rochedo sem esmigalhá-lo,
de forma a expor as ovas, insistindo para os outros experimentarem o que,
segundo ele, era um manjar dos deuses... e enfiava a boca sonoramente no ventre
arrebentado do ouriço se lambuzando todo. Nossa colega estagiária, foi a única
que se dispôs a realizar tal façanha... e também achou gostoso.
Eu,
particularmente, detesto comer bicho
vivo. Alguns anos depois fui parar na França em fazendas criadoras de ostras, e
também não consegui comê-las vivas. Causa impressão, como dizem os italianos...
Aliás lembrei de uma boa estória pra este portentoso blog!
Depois
do almoço demos uma descansadinha e ficamos às voltas com as filmagens. E
nessas, lá fui eu de mascara de mergulhos, snorkel, e pé de pato, para surgir de
um mergulho no meio do mar segurando uma bolacha marinha (uma espécie de ouriço
do mar achatado), ou algum outro ser interessante. Mas quando a professorinha
apareceu usando um mínimo fio dental, os moços esqueceram que eu existia, esqueceram
as sabias explicações do Professor e saíram filmando tudo o que ela exibia... E o que ela exibia não era pouco!! Mistérios da oceanografia cinematográfica!!! (ou do cinema oceanográfico!!!)
Após
o jantar, antes das análises e preleções, o
Professor nos avisou que ele e os cineastas teriam que voltar para São
Paulo, devido à alguma coisa extremamente importante. Ele iria com uma das “peruas”
Rural Willys com o motorista. O professor Mario assumiria o
comando da grande expedição, e nós deveríamos seguir todas as instruções que
ele passasse.
...
e nessa noite nosso querido professor sambista se esmerou e deu uma bela
palestra sobre a biologia marinha, e o nosso litoral... Foi boa mesmo. Explicou
um monte de coisas interessantes que devem estar gravadas nalgum lugar deste
nosso planeta... espero.
No
dia seguinte, Mario, estava preocupado porque nunca tinha guiado nada além do seu próprio
carro, e a Rural, com aquelas alavancas para a marcha reduzida e tração nas
quatro era realmente um pouco assustadora.
-
Nem olhem para mim – disse o Marco Aurélio, meu colega estagiário – eu
também... o maior carro que já guiei foi o meu Dauphine!
-
Tudo bem, deixa comigo – falei – eu já tive jipe. Não tem problema... quer dizer, não pode ter problema porque se acontece alguma coisa, o
Mário é vai ter que dizer que ele estava guiando ou assumir a direção porque essa rural é chapa branca.
-
Tudo bem... é só você tomar cuidado, mas você sabe mesmo mexer nessa alavancas todas?
-
Olha, Mario... é a mesma coisa do que trocar de marcha. A reduzida do meu jipe
só entrava com ele parado, então a Rural é mais fácil... Mas acho que não vai precisar nem reduzida,
nem tração nas quatro.
Bem...
para encurtar a estória, no primeiro dia fomos até umas praias bem próximas,
porque eu também não me sentia muito a vontade pilotando um carro oficial. Se
dá uma esbarradinha, um risquinho que seja, é a maior encrenca... mil
relatórios, que poderiam complicar para o Mário, que como falei era um carinha
bem legal.
Após
o jantar abrimos uns mapas de navegação, que mostram muitos detalhes da costa...
rios, curvas de nível, algumas construções grandes que possam ser avistadas pelos marinheiros...
são muito bem feitos, afinal a vida dos navegantes depende deles. Só não sabíamos se tinha estrada ou não, pois estavam abrindo a Rio-Santos,
que nessa época era pouco mais do que uma picada no meio do mato. Estudamos,
confabulamos e resolvemos nos aventurar até onde ia a estrada. Nosso objetivo era uma praia do outro lado
da enseada onde deveria haver mar bem batido. Teríamos que calcular bem o tempo de ida, porque em princípio, gastaríamos o mesmo tempo para a volta, a não ser que... a não ser que...
-
Única coisa que não pode acontecer é quebrar o carro!
-
Ou cair o maior toró.. o que é bastante comum nessa região.
- Olha gente com esses pneus
lameiros e tração nas quatro, essa rural passa qualquer atoleiro. É além disso
nessa época do ano não chove desse jeito. Eu vi uma previsão de tempo antes de sairmos de São Paulo e mostrava um período de tempo seco. Bem o negócio é ir com cuidado nos lugares perigosos. Isso deixem
comigo. Êpa, agora falou o piloto!!!
Olha pela amostra de hoje ele se saiu muito bem. Mas aquele riacho
estava fundo! Então, por isso que paramos e eu fui até a metade a pé. Nem
chegou até o joelho, e esses carros tem o distribuidor colocado bem alto. E o
fundo do riacho estava bem firme, acho que jogaram pedras. Ah... só tem uma coisa... se furar o pneu,
alguém tem que encaixar a roda, porque minhas costas estão meio ruinzinhas...
Ih! Lá vem ele com essas costas. É de dormir no macio... esse menino está
precisando sofrer um pouco. Tinha que fazer exército para ver o que é bom.
Dormir no chão. Tá acostumado com colchão de mola! Que nada, durmo num colchão
ortopédico duríssimo. Pô meu, vai ver que é isso que te deixa assim. Não, meus discos são moles. Só o disco que é mole?...Êêêê...
Era
mais ou menos o papo que rolava no escuro do quarto com dois beliches onde eu,
o Mário e Marco Aurélio estávamos alojados. Não consigo lembrar das aventuras que o Mário contou, por esse Brasil a fora. Ele e
o Marco engrenavam num papo e eu ficava ouvindo misturando as estórias com os
sonhos... e com as lembranças da lindíssima Sílvia, minha namorada na época, que era um
ser absolutamente maravilhoso. Moça simples, simpaticíssima, educada... um doce
de criatura e era de uma beleza absolutamente... surpreendente... sei lá. Ela sabia de seu encanto, mas não era
exibida, ao contrário, era um pouco tímida, o que a deixava mais mais mais
ainda. Nas minhas recordações e reflexões sobre minha a vida penso que deveria
ter casado com ela... Mas, hoje sei que não daria certo. Ela era muito... suave... muito pacata... sorte a dela!!!
No
dia seguinte acordamos cedo, tomamos um café da manhã bem reforçado, enchemos a
rural de vidros, formol, álcool, água, e mais uma boa quantidade de
equipamentos, livros e partimos em direção à Paraty, que até então não tinha
acesso por essa estrada, que na nossa expectativa estaria completamente deserta.
Esperamos um pouco para sairmos quando a maré estivesse começando a baixar, mas tínhamos que voltar lá pelas duas horas, que era quando a maré iria começar a subir pois não tínhamos a menor ideia de como estaria a estrada, ou se teríamos que passar por praias ou riachos que enchem com a maré.
E lá fomos nós... com eu pilotando aquela Rural Willys cinza escuro, chapa branca,
em pleno regime de ditadura militar... um veículo que não causava muita boa
impressão. Havia dois equipamentos que eu sempre usava no litoral... um era a alpargata. Houve uma época que eram feitas aqui, as alpargatas Roda com sola
de corda que eram ótimas para andar nas costeiras, podiam molhar e secar, sem enrijecer e escorregavam muito pouco. Além disso eram uma boa proteção contra
cortes em cracas ou ferimentos por ouriços, que podem inflamar bastante. Nessa
época já era difícil encontrá-las, mas vinham do Uruguai... na sola estava a
marca Rueda! Ah... o outro equipamento era um bom chapéu de palha, os panamá
são sensacionais, mas mesmo os tradicionais de palha trançada são ótimos porque
ventilam bastante, e como eu esquento a cabeça por qualquer coisa...
É,
parece um detalhe sem importância, mas meu respeitável público vai perceber que
até que foi uma boa...
Bem,
acontece que para nossa surpresa, já no começo de nosso trajeto, percebemos
que os lugares vilarejos onde havíamos passado no dia anterior e não vimos ninguém, agora estavam cheios de
gente que nos observava muito interessadamente, e em alguns pontos chegamos a
ser aplaudidos...
-
Ei gente!! O que é isso? Vocês repararam no que está acontecendo?
-
Não. O que foi? O carro está com
problema? O que? Problema no carro? Vamos ter que voltar?
Meus
companheiros de viagem, absortos na paisagem deslumbrante, e nos mapas e
tabelas e chaves de classificação, não haviam percebido a população toda
enfeitada nos aplaudindo... principalmente porque eu achei aquilo muio
engraçado e toda vez que tinha alguém na estrada eu buzinava e agitava meu chapéu
de palha... para a alegria da jovem professorinha que sentava ao meu lado,
estava se dedicando ao joguinho da sedução, passando a mão na minha perna, se
encostando... jogando olhares, talvez perturbada, porque como eu era apaixonado
pela deslumbrante Sílvia, não fiquei babando ao vê-la desfilar seu lindo corpo,
levemente, mas muito levemente encoberto pelo fio dental... No banco de trás, separados por caixas de
isopor, livros, mapas e... estavam o
Marco Aurélio e a Lilian, mais sérios. Ela começou se ligar na situação
enquanto que o Marco, um rapaz estranho, tinha a postura de alguém bem mais
velho, mas muito sarcástico, achava perigoso eu brincar, que a gente não sabia o que podia
acontecer se alguma autoridade de verdade resolvesse nos “enquadrar.”
... imagina se aparece alguém do exército ou da polícia mesmo, aí quero ver você ficar fazendo
tchauzinho.
Chegamos numa parte da estrada aberta recentemente, e que tinha muitos trechos em obras,
principalmente quando passava em cortes nas montanhas.
E de repente apareceu uma faixa que atravessava de um a lado para o outro: “A população da vila de *** agradece o governador do estado Fulano de Tal” pela abertura da estrada Rio Santos.”
Em
vários pontos havia uma faixa com os mesmos dizeres, mas com o nome do lugar
escrito com outro tipo de letra, atravessando a pista.
- Caramba é isso! Estão pensado que a gente faz parte da comitiva. Devem estar inaugurando a
estrada hoje. Aí, eu não resisti, e parei num lugar onde parecia um sub projeto
de futuro barzinho... sob os protestos dos dois no banco de trás, fui lá
perguntar se tinha cigarro, ou algo parecido. O cara ficou meio desconfiado, carro oficial, alpargatas, chapéu de palha... perguntou afirmando se a gente era de São Paulo... é a gente está só de
passagem. Mas aí um velho meio bêbado contou que realmente rolava uma
comemoração por que era o dia em que as duas frentes de trabalho, a que vinha de Paraty e a que vinha de Angra, tinham se
encontrado, e pela primeira vez era possível ir por terra do Rio até Santos! Voltei pro carro...
-
Olha turma! Essa podemos contar para os nosso netos! Estamos inaugurando a
futura Santos-Rio... Sabem lá o que é isso?! Deve ter gente aqui que nunca viu um automóvel...
Mas
continuamos nossa viagem, por aquela estradinha, onde realmente só dava para
passar caminhão, trator, jipe ou.... uma rural.
Paramos
em algumas praias e costeiras. A sensação de sermos dos primeiros a passar por
lugares como aqueles realmente era demais. Bem... Aí chegamos num trecho impressionante, era um corte gigantesco
numa montanha, uma subidona cheia de pedaços enormes de rochas, onde algumas máquinas haviam aberto uma trilha pela qual mal dava pra passar um carro. Quando chegamos no alto do morro divisamos a cena espetacularmente maravilhosa, daquela baia espetacular, e uma
praia mais espetacular ainda, onde havia uma bela casa. Descemos do carro para estudar a situação.
-
Vejam, do lado de cá tem um costão e um riacho,. Talvez tenha um mangue. Vamos
entrar lá? Boa!
A
estrada passava pela praia, mas desviamos por uma picada e paramos perto da
super casa, na sombra muito convidativa de uma enorme árvore.
Assim
que paramos veio um jipe e desceram dois caras com revólveres na cintura,
dizendo que não podíamos ficar lá, e... bem, não vou contar o papo meio
surrealista, porque quando eles perceberam que era carro oficial ficaram meio
perplexos. Entraram no jipe, foram até a casa e voltaram com um cara que se
apresentou dizendo que lá era casa de Dr. Sicrano da Costa Almeida Mendonça Macedo Fulano Prado ...
e foi recitando os sobrenomes quatrocentões, diretor da Tv sei lá qual. O Mario
explicou o que estávamos fazendo e que além disso eles não tinham autoridade
para impedir alguém de ficar numa praia, que se eles insistissem ele colocaria
no relatório que tinham sido atrapalhados pelo Dr. Sicrano Lista Telefonica da
Silva. Demos uma olhada no riacho que vinha pelo meio das pedras... o lugar era
bonito mas muito modificado, sem interesse para nós, que saímos depois de dar uma passeadinha na praia e uma descansadinha... só para deixar os caras em pé (babando com o fio dental da professorinha) esperando a gente ir embora.
Finalmente chegamos no lugar previsto (hoje eu acho que ficava nas proximidades da Usina
Nuclear), uma pequena praia de mar mais batido, como era de se esperar pela
posição geográfico, onde realmente achamos um monte de conchas de tudo quanto é
tipo de bicho vivo e morto. Paramos o carro numa sombra e depois de coletarmos,
já tentando classificá-los, enquanto fazíamos um bom lanchinho, mas de repente.. Buum!
Buumm! Bumm!
- Caramba! que explosão!
-
É parece que a turma continua trabalhando... isso deve ser dinamite...
Esperemos que não tenham dinamitado nossa estradinha! Êêê... vira essa boca pra
lá.
Mas estávamos concentrados nos nossos bichinhos até que eu falei que já deveríamos
começar a voltar, Olha pessoal, passar por aqueles riachos e praias de areia
fofa com maré alta e de noite... !!!!
E,
na volta realmente não deu outra!!! Aquele corte na montanha onde mal passava
um carro estava completamente atulhado de pedras enormes.... Totalmente
impossível passarmos. Estávamos bloqueados.
- Hii, cacete!!! Dinamitaram a estrada mesmo!!!
- Nooossa! E agora?!
-
Olha eu vi gente naquele acampamento com máquinas paradas.
-
Tem certeza!
-
Vi sim... de qualquer maneira se não dá pra ir pra Angra o negócio é voltar. Aí
a gente acha os caras, quem sabe eles dão um jeito.
Agora
escrevendo para meu portentoso blog, lembrei que fiz uma foto de um dos
valentes participantes, coçando a cabeça, em pé na frente da rural. Vou procurar...
Tivemos
sorte que os trabalhadores estavam ainda arrumando umas coisas, um deles ainda
falou.
-
Puxa! Se os senhores tivessem avisado que iriam voltar, a gente não dinamitava!
-
Foram bastante camaradas e se dispuseram a levar duas máquinas que rapidinho
abriram uma passagem para nossa heroica excursão que participou da épica inauguração da Rio-Santos!!!
Ah..
antes de terminar a narrativa de tão trepidante aventura, tenho que contar que
na volta as faixas estavam viradas... acho que a comitiva oficial tinha passado
na nossa frente na ida e na volta, então eu fiquei mais entusiasmado ainda.
-
Olha turma, realmente fomos os primeiros a passar por aquela estrada!!!
-
Inauguramos a Rio-Santos! Mesmo!!!