quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A PROFECIA DE DOM FERRARI

 as visões de dom aguiar ferrari

         - Mas isso aqui é incrível, Padre Carlos! É um pergaminho antiquíssimo!
           - Você é engraçado mesmo... tudo que você pega é “incrííível” ! - disse o padre, com um sotaque meio alemão e aquele jeito mole de falar dos padres. - Não sei como nem porque, mas vários documentos desses vieram parar aqui. Realmente são muito antigos, venha ver o que tem aqui!
              E dirigindo-se a um armário decrépito me mostrou um imenso baú que alguém tentara esconder embaixo de uma prateleira meio despregada.
              Estávamos num pequeno cômodo do sótão, sem janelas e com um forte cheiro de mofo. A única luz vinha de uma lâmpada pendurada pelo fio que descia do telhado do mosteiro dos jesuítas, cujas paredes centenárias de barro socado guardam documentos e objetos de valores inestimáveis, únicos no mundo. O lugar me provocava calafrios. Dava  impressão que alguma porta se abriria rangendo para a saída de um fantasma. A poeira cobria inúmeras pilhas de caixas de madeira e papelão desmanteladas, repletas de livros, cadernos e folhas soltas.
              Não foi fácil tirar o velho baú desconjuntado que relutava em sair do lugar onde estava há mais de um século.
              - Olha, outro dia achei que deveria empurrar o armário, para limpar em baixo, mas olhe só o que achei...  montanha de papeis se estragando... tudo misturado. Então... Eu gostaria que você me ajudasse a ver se tem alguma coisa importante. Sabe, tenho a impressão que estavam tentando esconder esses documentos! Dizem que de tempos em tempos os monges jogavam fora coisas velhas e inúteis para não juntar ratos, traças... Talvez alguém, um deles tenha enfiado o baú aqui para preservá-lo... escondendo da faxina!
              Esses papéis me atraiam muito, talvez por serem a coisa mais antiga sobre a qual eu já havia posto a mão, tinha certeza que teria uma grande surpresa. Peguei o maço de folhas mais velhas que estavam amarradas com uma tira de couro, a qual se desfez na primeira tentativa de desatar o nó. Comecei examinar o material, enquanto padre Carlos estava quase enfiado dentro do armário verificando se não tinha sobrado mais alguma coisa embaixo do lugar onde estava o baú. Mas continuava a resmungar... - É. Isso é muito descaso!... Este convento esteve semi-abandonado várias vezes. Ninguém liga para a História. É um desinteresse pela cultura nesse país... Se fosse na Europa... Mas que cara é essa?
              - Não sei .. é tão estranho! É difícil de ler...Olhe tem uma carta e mais uns papéis dentro disso que parece... dá impressão de ter sido uma espécie de envelope.
              Eram dois conjuntos de manuscritos dobrados, que eu havia aberto com muitíssimo cuidado, para que não se rompessem nas dobras. Enquanto o religioso perscrutava outros textos, eu tentava decifrar os documentos, mas depois de alguns minutos apelei ao padre.
              - Padre Carlos, por favor! Veja o que é isso! O senhor está mais acostumado a ler esses textos em português arcaico. Olhe, este aqui parece ser uma carta e o outro não entendi direito. Não sei se é um sonho ou uma peça de teatro. Parece que fala de pessoas dentro de bolas!... Veja, não é isso que está escrito?!
              - Calma, vamos ver... - disse o padre colocando os óculos de míope na testa e quase encostando o texto no seu nariz adunco. - Sim. É uma carta enviada a um certo dom Fernando Ferrari. Oh! Meu Deus!!
              - Que foi?
              - Veja! A carta explica porque o irmão dele foi condenado pela Santa Inquisição! Olha, leia aqui, eu te explico... Tem umas letras que eles escreviam diferente... isto aqui é um “esse”, aqui é um “g”.
              Padre Carlos, pegou os documentos das minhas mãos e tentando ser solícito explicava como fazer para decifrar o texto, sem pontos, nem vírgulas, numa ortografia bem estranha. Mas eu me  atrapalhava e perdia muito tempo, deixando o religioso impaciente.
             - O nome do coitado era engraçado: Dom Rolando Aguiar Ferrari. E foi condenado porque dizia ter as visões do inferno quando meditava em jejum. O sujeito que mandou a carta diz que esse outro pergaminho é parte dos escritos de Dom Rolando.
              - Nossa, Padre! Mas por que todo esse espanto?
              - Olha .. é porque é espantoso mesmo! Vamos até um lugar mais iluminado...
              Nos dirigimos a outro quarto e sentamos num banco de madeira junto de uma das janelas azuis, recém pintadas. Colocamos os documentos sobre uma caixa vazia e começamos decifrar o que estava escrito no pergaminho. Aos poucos apenas o padre falava, lendo em voz baixa, curvadíssimo sobre o texto... e eu acompanhava seu dedo passando por aquelas letras estranhas.
              “..alguaas veeses eu levado dentro da lux em meditaçaõ huuma sensaçaõ quasi real como estar eu no alto de montanha pero hera no alto de torre altíssima et aho olhar para baixo eu via uma çidade imensa simille dentro enorme fabrica por exhalaçaõ tudo cobrir & este peccador procurava hum ponto de luz que me mostrasse o divino caminho da paz mas a visão não sahia”..
              - Está dando para você entender?
              - Sim, sim... às vezes o sentido da frase se perde um pouco, mas tudo bem...
              “.. eu lutasse para naõ ter mais visoens pensando em Deus et no seu amor infinito via a çidade enfumaçada & nos primeiros dias naõ dei muita importância para o facto mas as visoens se tornavam freqüentes e reais & minha perturbaçom aogmentou aijnda quando com aquillo sonhava & depois de ter este peccador desesperto ellas continuavaõ em mente minha grudadas..”
              - Humm... tem uma parte aqui que desbotou a tinta e o pergaminho está desmanchando, veja. Bem.... aqui já dá para recomeçar...
              ....tam impossíveis pois a çidade hera differente de cousa deste mundo de Deus porque lo visto por este peccador representava uma çidade de torres de feiçom geometrica e isto todos sabem naõ existir.”
              O padre parou um instante como se tivesse perdido a respiração. Eu estava de joelhos também debruçado sobre o texto, com a mão apoiada no ombro dele.
              “.... et torres altíssimas com as paredes revestidas de simile vitrum et no meio daquellas via este peccador vias muy retíssimas repletas de relusentes semelhante a bolas de ferro pintado”.
              “...depois vi dentro das bolas coloridas poderosas caldeiras que exhalavaõ materias salitrosas & pessoas ficavam muito tempo no interior delas et bolas numerosas cobriam vias et faziam simille tapetum de ferrum & em as margens de grande rio no meio das torres bolas corriam mais rapidas que anima mais velox criada por Deus nosso Senhor
              - Minha nossa, padre! É demais!... Ele viu o futuro!!
              -. Escute isso! - murmurou padre Carlos...
              “em huuma tarde enquanto meditava tive aterradora visom de bola espatifada & pessoas dentro suas carnes rasgadas mostravaõ & pedi a Deus para me livrar desta visaõ do inferno et as pessoas com certeza eram peccadores et agora gemiaõ de sofrimento.
              - Que coisa, padre... será que ele escreveu para que serviam as bolhas?
              - Bem ele pergunta a Deus porque o havia escolhido para ver o sofrimento das almas pecadoras... talvez por isso foi condenado. Mas depois... continua as descrições...
              “...as bolas ocupavam todos os espaços e entravam dentro das torres e praças repletas eram desses estranhos objetos & alguuas bolas sendo lavadas e escovadas simile cavalos recebiaõ muy cuidado das pessoas que passavaõ muitas horas dentro dellas paradas em vez de trabalhar ou plantar coisa que seria impossível pois terra naõ havia... ”
              ... depois aqui fala de estranhos sinais desenhados nas bolhas, escute!
              “...este pecador muito perturbado sem apetite et sempre que meditava as visões do inferno apareciam & vi signos divinos em alguuas bolas identificando as almas dentro deles que ainda tinham possibilidade de salvaçaõ”...
              “... temor tenho de heresia ver a presença do Senhor no inferno, mas este peccador sempre me penitencio e fallo para meu confessor tudo que vejo”...
              - Não sei se posso continuar. Percebe que isto é uma confissão e que ele...
              - Não, padre Carlos! Essa não... o coitado foi executado e também ninguém sabe que fim levou o irmão dele... além de ser um fato tão antigo...
              - Está bem.. Mas escuta o que ele escreve sobre os sinais das bolhas!! Incríível!!
              “... os alguus signos eram estrelas et muitas possuiaõ uma crux deformada, como se tivesse sido amassada e depois empurrada”...

                        “... e o que mais me perturbava era ver a palavra divina escrita em coisas que estavam no inferno porque em muitas delas bolas via claramente escrito palavra divina FIAT” ...