as visões de dom aguiar ferrari
- Mas isso aqui é incrível, Padre Carlos! É um
pergaminho antiquíssimo!
- Você é engraçado
mesmo... tudo que você pega é “incrííível” ! - disse o padre, com um sotaque
meio alemão e aquele jeito mole de falar dos padres. - Não sei como nem porque,
mas vários documentos desses vieram parar aqui. Realmente são muito antigos, venha ver o que tem aqui!
E dirigindo-se a um
armário decrépito me mostrou um imenso baú que alguém tentara esconder embaixo
de uma prateleira meio despregada.
Estávamos num
pequeno cômodo do sótão, sem janelas e com um forte cheiro de mofo. A única luz
vinha de uma lâmpada pendurada pelo fio que descia do telhado do mosteiro dos
jesuítas, cujas paredes centenárias de barro socado guardam documentos e
objetos de valores inestimáveis, únicos no mundo. O lugar me provocava
calafrios. Dava impressão que alguma
porta se abriria rangendo para a saída de um fantasma. A poeira cobria inúmeras
pilhas de caixas de madeira e papelão desmanteladas, repletas de livros,
cadernos e folhas soltas.
Não foi fácil tirar
o velho baú desconjuntado que relutava em sair do lugar onde estava há mais de
um século.
- Olha, outro dia achei
que deveria empurrar o armário, para limpar em baixo, mas olhe só o que achei...
montanha de papeis se estragando... tudo
misturado. Então... Eu gostaria que você me ajudasse a ver se tem alguma coisa
importante. Sabe, tenho a impressão que estavam tentando esconder esses documentos! Dizem
que de tempos em tempos os monges jogavam fora coisas velhas e inúteis para não
juntar ratos, traças... Talvez alguém, um deles tenha enfiado o baú aqui para
preservá-lo... escondendo da faxina!
Esses papéis me
atraiam muito, talvez por serem a coisa mais antiga sobre a qual eu já havia
posto a mão, tinha certeza que teria uma grande surpresa. Peguei o maço de
folhas mais velhas que estavam amarradas com uma tira de couro, a qual se
desfez na primeira tentativa de desatar o nó. Comecei examinar o material,
enquanto padre Carlos estava quase enfiado dentro do armário verificando se não
tinha sobrado mais alguma coisa embaixo do lugar onde estava o baú. Mas
continuava a resmungar... - É. Isso é muito descaso!... Este convento esteve
semi-abandonado várias vezes. Ninguém liga para a História. É um desinteresse
pela cultura nesse país... Se fosse na Europa... Mas que cara é essa?
- Não sei .. é tão
estranho! É difícil de ler...Olhe tem uma carta e mais uns papéis dentro disso
que parece... dá impressão de ter sido uma espécie de envelope.
Eram dois conjuntos
de manuscritos dobrados, que eu havia aberto com muitíssimo cuidado, para que
não se rompessem nas dobras. Enquanto o religioso perscrutava outros textos, eu
tentava decifrar os documentos, mas depois de alguns minutos apelei ao padre.
- Padre Carlos, por
favor! Veja o que é isso! O senhor está mais acostumado a ler esses textos em
português arcaico. Olhe, este aqui parece ser uma carta e o outro não entendi direito.
Não sei se é um sonho ou uma peça de teatro. Parece que fala de pessoas dentro
de bolas!... Veja, não é isso que está escrito?!
- Calma, vamos
ver... - disse o padre colocando os óculos de míope na testa e quase encostando
o texto no seu nariz adunco. - Sim. É uma carta enviada a um certo dom Fernando
Ferrari. Oh! Meu Deus!!
- Que foi?
- Veja! A carta
explica porque o irmão dele foi condenado pela Santa Inquisição! Olha, leia
aqui, eu te explico... Tem umas letras que eles escreviam diferente... isto
aqui é um “esse”, aqui é um “g”.
Padre Carlos, pegou
os documentos das minhas mãos e tentando ser solícito explicava como fazer para
decifrar o texto, sem pontos, nem vírgulas, numa ortografia bem estranha. Mas
eu me atrapalhava e perdia muito tempo, deixando
o religioso impaciente.
- O nome do coitado
era engraçado: Dom Rolando Aguiar Ferrari. E foi condenado porque dizia ter as
visões do inferno quando meditava em jejum. O sujeito que mandou a carta diz que esse
outro pergaminho é parte dos escritos de Dom Rolando.
- Nossa, Padre! Mas
por que todo esse espanto?
- Olha .. é porque
é espantoso mesmo! Vamos até um lugar mais iluminado...
Nos dirigimos a
outro quarto e sentamos num banco de madeira junto de uma das janelas azuis,
recém pintadas. Colocamos os documentos sobre uma caixa vazia e começamos decifrar
o que estava escrito no pergaminho. Aos poucos apenas o padre falava, lendo em
voz baixa, curvadíssimo sobre o texto... e eu acompanhava seu dedo passando por
aquelas letras estranhas.
“..alguaas veeses eu
levado dentro da lux em meditaçaõ huuma sensaçaõ quasi real como estar eu no
alto de montanha pero hera no alto de torre altíssima et aho olhar para baixo
eu via uma çidade imensa simille dentro enorme fabrica por exhalaçaõ tudo
cobrir & este peccador procurava hum ponto de luz que me mostrasse o divino
caminho da paz mas a visão não sahia”..
- Está dando para
você entender?
- Sim, sim... às
vezes o sentido da frase se perde um pouco, mas tudo bem...
“.. eu lutasse para
naõ ter mais visoens pensando em Deus et no seu amor infinito via a çidade
enfumaçada & nos primeiros dias naõ dei muita importância para o facto mas
as visoens se tornavam freqüentes e reais & minha perturbaçom aogmentou aijnda
quando com aquillo sonhava & depois de ter este peccador desesperto ellas
continuavaõ em mente minha grudadas..”
- Humm... tem uma
parte aqui que desbotou a tinta e o pergaminho está desmanchando, veja. Bem....
aqui já dá para recomeçar...
....tam impossíveis
pois a çidade hera differente de cousa deste mundo de Deus porque lo visto por este
peccador representava uma çidade de torres de feiçom geometrica e isto todos
sabem naõ existir.”
O padre parou um
instante como se tivesse perdido a respiração. Eu estava de joelhos também
debruçado sobre o texto, com a mão apoiada no ombro dele.
“.... et torres
altíssimas com as paredes revestidas de simile vitrum et no meio daquellas via
este peccador vias muy retíssimas repletas de relusentes semelhante a bolas de
ferro pintado”.
“...depois vi
dentro das bolas coloridas poderosas caldeiras que exhalavaõ materias
salitrosas & pessoas ficavam muito tempo no interior delas et bolas
numerosas cobriam vias et faziam simille tapetum de ferrum & em as margens
de grande rio no meio das torres bolas corriam mais rapidas que anima mais
velox criada por Deus nosso Senhor
- Minha nossa,
padre! É demais!... Ele viu o futuro!!
-. Escute isso! - murmurou
padre Carlos...
“em huuma tarde
enquanto meditava tive aterradora visom de bola espatifada & pessoas dentro
suas carnes rasgadas mostravaõ & pedi a Deus para me livrar desta visaõ do
inferno et as pessoas com certeza eram peccadores et agora gemiaõ de sofrimento.
- Que coisa,
padre... será que ele escreveu para que serviam as bolhas?
- Bem ele pergunta
a Deus porque o havia escolhido para ver o sofrimento das almas pecadoras... talvez
por isso foi condenado. Mas depois... continua as descrições...
“...as bolas
ocupavam todos os espaços e entravam dentro das torres e praças repletas eram desses
estranhos objetos & alguuas bolas sendo lavadas e escovadas simile cavalos
recebiaõ muy cuidado das pessoas que passavaõ muitas horas dentro dellas
paradas em vez de trabalhar ou plantar coisa que seria impossível pois terra naõ
havia... ”
... depois aqui
fala de estranhos sinais desenhados nas bolhas, escute!
“...este pecador
muito perturbado sem apetite et sempre que meditava as visões do inferno
apareciam & vi signos divinos em alguuas bolas identificando as almas
dentro deles que ainda tinham possibilidade de salvaçaõ”...
“... temor tenho de
heresia ver a presença do Senhor no inferno, mas este peccador sempre me
penitencio e fallo para meu confessor tudo que vejo”...
- Não sei se posso continuar.
Percebe que isto é uma confissão e que ele...
- Não, padre
Carlos! Essa não... o coitado foi executado e também ninguém sabe que fim levou
o irmão dele... além de ser um fato tão antigo...
- Está bem.. Mas escuta
o que ele escreve sobre os sinais das bolhas!! Incríível!!
“... os alguus signos
eram estrelas et muitas possuiaõ uma crux deformada, como se tivesse sido
amassada e depois empurrada”...
“... e o
que mais me perturbava era ver a palavra divina escrita em coisas que estavam
no inferno porque em muitas delas bolas via claramente escrito palavra divina FIAT”
...